Clube da Dona Menô
Dona Menô

NITRAM



Eu bem podia escrever sobre coisas ruins. Ai, meu Deus, eu podia e posso bombardear tanta gente apenas com minha "caneta", mas eu agora, neste instante, quero esquecer que existem pessoas muito malvadas por aí.

Hoje a luz se apagou e eu tive que conviver com a escuridão. Foi o único momento de clareza que eu tive durante o dia todo. Passo a carta que escrevi nesta situação:

“O Rio de Janeiro foi encoberto por uma grande massa quente. Ao final da tarde uma enorme massa fria, ou melhor, uma corrente de vento, semelhante ao “sudoeste", assolou meu espaço (nem sei o que causou na cidade, porque não posso assistir ao noticiário e descobri que não tenho radinho de pilha).
 
Eu vi diante de minha janela do consultório todo o desenrolar da natureza, através de nuvens e ventos e tudo o que isso pode causar. Chamei minha secretária e disse:
 
“Sabe aquela nuvem lá longe? Sente a direção do vento? Daqui a pouco aquilo vai se mostrar como a ponta de um iceberg e você vai ver uma coisa dantesca".
 
Ela me olhou meio desconfiada, uma vez que tudo corria bem até então, no lado de baixo do Equador, até que janelas e portas começaram a ter vida própria.
 
Pensei comigo: "Como é que eu pude reconhecer este vento? Como é que eu pude perceber o que se aproximava?". Digo: instinto, experiência instintiva. Premonição seria abusar da lógica. Eu vi as mesmas nuvens e senti este mesmo vento quando eu convivia com o mar, por muitos anos e há muitos anos. Os ventos não são esquecidos por quem esteve à mercê dele.
 
São 18:50h e o vento está por aqui. Estou sentada diante da minha mesa da sala, a qual só chego perto quando estou com pessoas de íntimo relacionamento, mas que no dia a dia só serve para ostentar uma fruteira rara, muito rara, apenas um objeto caro, que jamais poderá ser vendido, tal é o valor sentimental que tem.
 
Sentei para escrever em folhas de uma agenda vazia de 2008, já que a única iluminação que tenho agora é a do prédio ao lado e a de uma vela que está pela metade, que achei na cozinha, quando cheguei à minha casa e tudo se apagou.
 
Daqui a pouco a vela vai acabar... Meus celulares vão perder as baterias se a luz não voltar. Os convencionais ainda resistirão, devido às extensões com fio, as únicas coisas que me ligam neste momento ao mundo externo. Tão diferente de quando eu era criança e a família aproveitava a escuridão pra conversar, iluminada por um lampião e pelo amor.
 
Não dá vontade de jantar. Coloquei Coca-Cola numa caneca, medindo com o dedo o limite do copo, como os cegos fazem. Acabo de descobrir neste apartamento, tão estranho ainda pra mim, que sei cada lugar de cada coisa, assim que me vi driblando móveis, quinas e tentando ligar interruptores que não funcionariam.
 
Tropeçar em coisas é minha especialidade, mas, talvez, por me saber fisicamente sozinha, coloquei meu instantâneo instinto de sobrevivência no co-piloto para agir. Por outro lado, eu me senti insegura - não pela escuridão, mas pela minha insignificância diante de minha "cegueira".
 
No domingo assisti a um filme sobre a vida de Ray Charles. Descobri que ele era viciado em alguma droga injetável. Soube que ele foi o maior garanhão do pedaço - apesar de ceguinho, ceguinho... O cara traiu pra caramba a abnegada esposa. Um bon vivant.
 
Ray cantava brilhantemente. Boa parte de sua performance se deveu à "desinibição" que as drogas proporcionavam. Mesmo assim, foi um gênio na arte de cantar e compor, principalmente melodias. Ele era cego, mas, em meu conceito, isso foi vantagem em sua carreira e em sua vida. Nem sempre uma deficiência leva a outras. Ele se valeu da dele para ser melhor que todos à sua volta.
 
Em uma parte do filme ele lembra de um episódio da infância, quando com uns dez anos (acho), ele caiu ao entrar em sua casa, bem na porta. Sua mãe estava bem diante dele, cozinhando, mas ficou em silêncio para descobrir como ele se viraria. O menino gritava: "Mãe, mãe, ajude-me! Onde está?!". 
 
Como ela não respondia, em lágrimas ele se levantou, tocou a lareira e viu que podia se queimar; desviou o caminho e sentiu o cheiro de comida; "olhou" através da janela e ouviu homens trabalhando na roça e cavalos correndo; "olhou" para o chão e pegou um grilo que cantava. Ele passou o inseto no rosto, diante do espanto da mãe, e disse: “Mãe, eu sei que está aqui. Se eu sinto o grilo, posso sentir você!" - ou algo assim.
 
Sua mãe o abraçou forte, chorando. Ele perguntou por que chorava. Ela disse: "De orgulho, meu filho".
 
Minha mãe fez muitas assim comigo, e, de forma controversa, também meu pai. Acho que agora começo ao que vim nesta crônica "obscura".
 
Vento forte, barco à deriva, quase noite e uma família sozinha em alto-mar. A única coisa a fazer era... tirar a água que enchia o barco, que chegava através de um furo. Talvez um coral tenha sido a causa da avaria.
 
Formiguinhas entre imensas vagas, em meio a ventos como os de hoje. Eu me sentia calma (como sempre estive em situações críticas no futuro), mas pequena, vendo uma onda de metros ameaçando todos.
 
Por muitos anos eu sonhei com essas ondas e elas me encontravam na areia. Eram ondas gigantes, que mesmo que eu estivesse em terra, elas iam me pegar. Muitos sonhos com ondas eu guardo e todos eles têm um sentido, um significado, tudo relacionado ao meu passado.
 
Agosto e o vento. Não sei de meteorologia, mas sei de ocasiões. Eu evitei de escrever sobre ventos e "agostos" muitas vezes em minha vida. Nem sei se em agosto venta mais - até acho que não.
 
Em agosto é dia de alguma santa? Nunca sei quando é dia de Santa Bárbara. Dizem que é santa das tempestades... Eu amo tempestades, desde que sejam nas seguintes situações que começarei a dissertar a cada parágrafo a seguir.
 
1 - Numa praia, pelada e nadando. Não imaginem uma cena sensual, porque não é! Uma menina nua na praia, embaixo de trovões e ventos, mergulhando em mar muito morno. Um mar que muitos poucos conheciam. Eu me arriscava? Sim, mas eu era tão "primata" que isto passava batido...
 
2 - Arranhando a minha bunda numa cachoeira que dava no mar. No caminho, pitús... Eu adorava escorregar com a água de uma cachoeira, onde eu via camarões de água doce. Eu os cozinhava e até os comia crus. Em dia de chuva eles apareciam mais. Era em Conceição de Jacareí, divisa de Mangaratiba e Angra dos Reis, lá no final dos anos 70.
 
3 - Armando e desarmando barracas de acampamento. Achando que a única coisa válida no mundo era um teto e um canto seco.
 
4 - Em meio a corais brancos (que eu os tenho aqui na minha estante, retirados por mim do fundo do mar). Eu percebia que lá fora, acima de mim, na superfície, o vento estava forte, o oposto do que acontecia debaixo da água.
 
5 - Convivendo por muitos dias com anêmonas do mar - sugando a vida e os meus dedos curiosos que tentavam salvá-las das correntes.
 
6 - Ilhas inatingíveis, trovões, ameaças súbitas, a NATUREZA em toda a sua imponência. Um barco naufragado... Uma estrela do mar seca na areia, um boto que conseguiu fugir do arpão, um ouriço que meu deu muito trabalho no pé, depois de ter sido totalmente enfeitiçada por ele.
 
7 - Na minha memória, um pedido de socorro da sirene de nosso barco. Minha família em perigo numa correnteza, numa pane dos infernos.

Enquanto escrevo isto percebo que ainda tenho uma bela caligrafia. Há tanto tempo que eu não escrevo nada além de receitas e evolução de doentes em fichas médicas... Tenho calos nos dedos desde a infância, de tanto escrever. Parei de escrever, mas os calos continuam. Lembro de como eu tive que treinar a minha letra nas sacrificantes cartilhas, sob o olhar atento de minha mãe. Talvez com o mesmo propósito da mãe de Ray.
 
O vento uiva e sacode o vidro da janela. Olho pra parede branca e vejo meu pai à minha frente, naquele barco, como um capitão. Hoje eu sei que ele estava apavorado, mas no dia eu o via como nosso protetor. Ele não nos abraçava e contava que cada um no barco fizesse a sua parte.
 
O som da sirene chamou a atenção de um barco, um enorme barco, imenso, muitos metros acima de meus olhinhos. Fomos resgatados e nada mais me lembro daquele dia.
 
Poucas vezes senti orgulho de meu pai, talvez por ser criança - e depois uma adulta orgulhosa, que não sabia dar valor ao pai que tinha. Mas naquele barco, no meio do nada, ele era a única certeza de salvação.
 
Até hoje eu luto contra tempestades e sobrevivo a escuridões, mesmo tão longe daquele barco, o NITRAM, o paciente pássaro martim-pescador, que aguarda horas pelo melhor peixe.
 
A vela acaba e as folhas da agenda também. Aguardarei a luz voltar, pacientemente - porque ela vai voltar...
 
Rio, 10 de agosto de 2009”

ORAÇÃO A SANTA BÁRBARA
 
Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura.
 
Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza, este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras.
 
Santa Bárbara, rogai por nós.
 
Leila Marinho Lage