Clube da Dona Menô
Dona Menô
Gulliver e o meu café
Da série “A mudança (cap XV)

Lemuel Gulliver era um cirurgião de bordo de um navio inglês que cruzava os mares do sul. Após um naufrágio ele conseguiu chegar à ilha de Lilliput, onde os habitantes eram minúsculos em tamanho e estavam sempre em conflito por qualquer coisa. Os pequenos homens o hostilizaram, mas Gulliver acabou amigo daquele povo. Eles cuidaram dele como igual, após entenderam que Gulliver não oferecia perigo.

Foi uma estória escrita em 1725, por Samuel Swift, escritor, teólogo, muito politizado. Seus contos criticavam as sociedades inglesa e francesa da época.

Nossa personagem também andou pelas terras dos gigantes, os Brobdingnag, aristocratas interesseiros, uns merdas... Ou seja: o que de pior existia no século.

Em suas viagens Gulliver também conheceu os Houyhnhm, cavalos com inteligência humana, com valores morais perfeitos, que tinham medo de um povo composto por homens pecaminosos, os Yahoo. Gulliver levou de volta para a Inglaterra o que aprendeu com tais raças.

Gulliver é mais ou menos como eu, que viveu em diminutos ou em imensos lugares. De cada lugar tentei tirar proveito. Hoje moro em um apartamento aconchegante (porque assim o fiz), mas que deixa a desejar em certos espaços, como a cozinha...

Eu nasci cercada de quintais; minha vida se passou em lugares espaçosos, mesas enormes, salas grandes, árvores imensas, terraços ensolarados, armários amplos. Eu não sabia o que era viver em recintos resumidos e sufocantes - pelo menos, na minha concepção.

Hoje aconteceu o que acontece todo dia: eu quebrei alguma coisa na cozinha. Para uma pessoa “espaçosa e espetaculosa” como eu, trabalhar em um espaço resumido é o mesmo que colocar Gulliver sentado na cadeirinha dos anões – não vai dar certo... O que quebrei hoje foi a vasilha de uma cafeteira que comprei há dois dias.

Eu chegava das compras, cheia de sacolas, quando, numa virada radical do corpo, lá se foi a cafeteira ao chão. Obviamente minha interjeição foi “Puta quiu pariu!!!”, mas logo tentei me adaptar à nova situação, pedindo à minha secretária para achar no Rio de Janeiro a merreca da jarra da cafeteira que comprei em promoção na Casa e Vídeo.

Poxa... Eu queria economizar, afinal, quando eu coo café no saco de pano, que fica bem mais gostoso, gasto o dobro de pó...

Café de saco

Dizem que o coador de pano de saco é nojento; que acumula fungos e coisa e tal... Eu nunca tive piriri por causa disso. Até porque o coador que uso para o café é muito bem lavado e seco, portanto tem tanto germe quanto qualquer utensílio da cozinha.

O café de saco tem melhor sabor e a gente pode acondicioná-lo numa garrafa térmica. Se bem que o café  antioxidante é aquele que é feito na hora, sendo prejudicial à saúde com o passar do tempo - assim disse um colega que entende de plantinhas, um médico escritor e todo bam bam bam.

Eu só sei que café do "bão" é o meu! Nem na Bolsa do Café, em Santos, tomei um café tão gostoso. E isso porque o faço com a técnica de dona Lola, minha mãe, que não é viva, mas me passou tantas artimanhas que está nesse mundo através de mim.

Eu precisava economizar, usando cafeteira (o Pilão tá os olhos da cara), então comprei a tal da cafeteira baratinha. Eu a coloquei num armarinho de rodízio, que eu empurro toda hora para poder limpar o chão - aliás quase tudo aqui tem rodízio nos pés, pois, ao contrário, eu já teria destruído tudo dentro de casa.

O quartinho da despensa, mais comumente chamado de quarto de empregada, tem escadas penduradas na parede, máquina de lavar, mil ventiladores e vassouras, estrategicamente guardados, como também, toda a minha vida em armários de metal, com perfurações que impedem o mofo. A improvisação de quem teve muito em muito espaço e agora tenta guardar o pouco que restou em espaço menor ainda.

Pra que guardamos as coisas?...

Já que tenho 50 anos hoje, tenho a liberdade de usar tudo que eu gosto de usar. Não guardo nada que acho que tenha valor e beleza – eu as uso!!! As únicas coisas que guardo são as que me lembram o passado, que talvez não sejam valorizadas após minha morte, mas eu guardo para que sumam comigo.

Tralhas? Eu já me desfiz de muitas - com pena, mas me desfiz. O que restou é o que é imprescindível guardar, pois todo mundo tem seu tesouro, e o meu tem minhas memórias.

Mas a cozinha é um caso sério. O interfone estava enguiçado desde a minha chegada aqui. Com muito custo eu convenci a locadora a pagar o seu conserto, pois, pelo que entendi, ela diz que meu apartamento foi entregue na mais (dita) perfeita ordem...

A ordem que encontrei neste lugar foi a seguinte: Muitos fluidos negativos. Eu senti muita tristeza aqui e lembrei muito de meu pai. Sofri muito, tanto psicológica quanto fisicamente. Eu senti meu pai aqui o tempo todo. Em algumas vezes, minha mãe dava amparo espiritual. Esta bruxinha me protege até hoje...

Meu pai era uma pessoa normal, mas que ficou doente mental (quem me lê sabe). Eu senti a presença de meu pai aqui, gritando e se aborrecendo, e eu me senti mal. Depois vim a saber como acabou a pessoa que aqui morava - sozinha e alucinada. Pelo menos meu pai teve a mim, lutando contra minha raiva e resgatando o amor que eu tinha por ele.

Minha mãe está neste lugar e diz que eu tenho que aturar gente safada. Eu aturo, ok? Sabe por quê? Porque não vim para este lugar sem propósito. O beijo que recebi da locadora, sobrinha do dono,  recomendando-me cuidar deste lugar, aos prantos, me lembrou muito passados muito bem marcados. Eu recebi um beijo e um abraço, e dias depois, uma chuva de falta de educação e falta de cordialidade, assim que recebi as chaves... Lembrei de teatro.

Imagina um senhor, o antigo morador, o dono da propriedade, tentando abrir uma geladeira. Ele tinha geladeira grande como a minha? A minha é enorme, como o meu fogão e meu freezer. Tive que interditar a porta da cozinha por causa de meus aparelhos, e por isso sinto-me mais acuada ainda.

A cozinha é um lugar de criação, como é o meu computador. Na cozinha eu realizo meu outro lado, de dona de casa; faço comidinhas gostosas; desligo-me de doentes que dependem de mim e de sites que tento fazer, mas que sai todo errado.

É muito ruim cortar tomates em cima do mármore (vagaba) na pia, em meio a copos que secam... Minhas antigas cozinhas, todas as que tive, foram melhorzinhas.
 
Eu não me incomodaria, caso eu não tivesse batalhado tanto na vida, mas pelo que foi investido em mim e o que investi na vida, sem dormir e sofrendo por vidas humanas, eu devia ter, pelo menos, uma mesa pra cortar alfaces e coisas afins.

Hoje uma amiga comentou comigo que a cozinha de sua casa e a de sua casa de campo são enormes... É ruim, heim! Eu não tenho casa de campo!!! Eu só precisava de uma bancada e nada mais!

Não tenho a menor inveja de ninguém. Isso eu posso dizer do alto de minha existência. Não me dá o menor tesão de sentir inveja, porque tesão é grátis e não tem preço.

Acho o maior barato quando eu faço uma viagem idílica, que jamais ninguém fez, curtindo coisas que ninguém curtiu, mas, sinceramente, de vez em quando me faz falta ter o que tive na minha infância, de graça, sem fazer prestações, sem me preocupar com o dia de amanhã.

Tive que interromper este texto-desabafo porque minha secretária tocou a campainha. Ela, como toda pessoa extremamente competente, já trouxe a vasilha da cafeteira... Eu paguei uns 39 paus pela dita cuja. Ela comprou a merda da vasillha por 29...

Preciso morar no interior. Isso aqui tá amarrado!

Leila Marinho Lage
Rio, 01 de julho de 2009