Clube da Dona Menô
Dona Menô
A Mudança (04)


Amarelo ovo
 
Eu vim morar num lugar onde o banheiro é amarelo ovo... Eu não sei qual foi a década em que isso era moda, pois amarelo ovo só combina com frigideira.

O local foi de um senhor que já faleceu. Mudei para uma casa “velha nova”, que estava fechada. Sinto que ele passou por aqui e me entregou sorrindo o seu lugar. Mas, venhamos e convenhamos, amarelo ovo só traz baixa energia. Tudo é amarelo no banheiro. Eu me sinto o próprio pinto em gestação!
 
Às vezes eu penso em fazer do banheiro um reduto da década de 60 ou 70, colocando decalques de flores azuis nos ladrilhos e o símbolo hippie de Paz e Amor nos quatro quadrantes. Outra hora penso em pintar os ladrilhos de branco-hospital e enfeitar com algum listelo do preço de uma consulta médica em Ipanema.
 
Nunca tive vontade de reformar nenhum lugar além do meu consultório, que é montado de acordo com minha personalidade - um navio. Mas este lugar aqui tem um ar meio misterioso, meio transcendental. Um mau gosto que dá dó, mas algo de alguém que eu começo a imaginar como tenha vivido. E por isso vou adaptar as coisas de Dona Menô ao estilo do antigo morador que me dá boas vindas.

Amarelo ovo combina com o quê?... Talvez um omelete... Macarronada com camarão e catupiry? Não... Banheiro tem que ser aconchegante para compensar a perda do espaço para meus sais...

Nunca morei tão alto. Nunca morei ao lado de tanta gente. De madrugada até meus passos devem incomodar. Há pouco tive que interromper uma tarefa árdua: colocar a cadeira de praia e a barraca em cima de um armário. Que horror! O vizinho de baixo bateu no teto (provavelmente com uma vassoura) e eu tive que parar de fazer a arrumação de meu novo canto. De manhã todas as cotovias são brancas e eu poderei continuar. Agora vou tentar fazer algo silencioso, como dormir - sem fazer xixi, pois a descarga é um escândalo.

Aqui tudo range: meus pés, a porta, a janela, as dobradiças, tudo. Vou gastar bastante em WD. Tenho que ficar quietinha, pois todos querem se recolher. Ninguém tem a ver com minha rotina de coruja.
 
Eu saí de um lugar cheio de ex-milico reformado, todos da ditadura. Nunca soube o nome deles. Eu nem dava bola para aquela gente e só falava o dispensável. Só o porteiro se incomodava com meus sons caseiros,  pois eu morava no primeiro andar, mas eles gostavam quando eu os chamava para comermos juntos cachorro quente às 4 horas da manhã. Agora estou no alto. Não há mosquitos; o vento substitui o ar refrigerado; não há barulhos, nenhum. Por isso mesmo fico irritada!

No antigo lugar eu tinha um visitante da madrugada. Alguém tocava a minha campainha e fugia. Como eu só tenho inspiração para escrever durante a madrugada, era um tormento, apesar de ser do teclado o único som emitido.
 
Acabei rapidinho com aquela brincadeira Um dia, talvez em algum momento das minhas derradeiras TPM, após receber a chamada à minha porta, acendi todas as luzes, abri a porta da varanda, chamei o porteiro lá embaixo e gritei para a rua, para que todos ouvissem: “Damião, veja qual a janela que está acesa!!! Quero saber qual é o puto que me perturba!”.

Damião, todo encabulado, estava do outro lado da calçada, dizendo que nenhuma janela estava acesa e esclarecia que devia ser defeito do meu interfone...

Meses antes tinha saído do apartamento do lado um casal de drogados. Ela era filha de um general, ou coisa que valha. O barraco entre os dois acontecia todos os dias e dava até polícia. Jamais, em momento nenhum, alguém do condomínio fez algo contra eles.
 
Um dia, também na TPM, eu escrevi no livro de ocorrências: “Os meus amigos vizinhos estão reclamando do som do meu teclado, é?... E as obscenidades que ouviram da filha do milico? Qual foi o macho que quis enfrentar tal situação em prol do sossego de todos? Então, pelo menos, sejam machos e verifiquem qual é o maluco da vez que toca a minha campainha e mandem o cara enfiar o dedo no...”.

Agora eu pago meus pecados num condomínio de gente diurna... Notívagos aqui, nem corujas, porque não há árvores a esta altura.

Antes de dormir decidi comer almôndegas de frango-diet-da-Macedônia-ao-forno. O barulho do plástico que embala as bolinhas estava num timbre mais alto do que o do meu teclado e  maior que o som da descarga da privada. Descobri a fórmula para manter o peso...

Eu me sinto como no diário de Anne Frank. Já saquei tudo: até 22:00h, tudo é permitido. A partir disso, silêncio total. Eu vou me vingar: se alguém gemer no sexo, direi que é atentado ao pudor!!!

Lembrei da tradução da música Impossible Dream: “Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz?”. To cheia de ouvir pagode e dança do créu em play grounds, enquanto eu tento estudar. To cheia por ter que dividir minha intimidade com gente estranha. To doida para comprar uma casa no campo de “pau-a-pique e sapê” e sair batida.
 
Já comecei a acreditar no que meu primo falou: “Tua mudança vai demorar mais ou menos um mês”. Mas, antes, vou bolar a combinação perfeita com o amarelo ovo do banheiro...