Clube da Dona Menô
Dona Menô
6/6/2006 - Dia da Secretária


Foto tirada no pimeiro dia que comprei minha 
máquina fotográfica, em 2007
 
Ela surgiu em minha vida numa hora muito difícil. Na verdade, é difícil dizer qual hora de minha vida não tenha sido difícil, mas como karma dura dez anos, estão me devendo algumas décadas de descanso...

Depois que eu voltei a trabalhar, após um bom tempo parada para me dedicar à vida de minha mãe, eu era uma médica sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vinda do interior de um mundo espiritual, conturbado até, mas não material.

Eu tinha uma secretária de muitos anos comigo e que ficou incumbida de cuidar de um consultório vazio, tentando manter meu nome e encaminhando as pacientes para outros colegas.

Era um tiro na minha cabeça, um verdadeiro suicídio profissional largar tudo de mão e fazer outras coisas que jamais ninguém faria tão bem quanto eu. Valeu a pena? Valeu sim! Por isso estou aqui de cabeça erguida.

Só que quando minha mãe morreu, eu me vi com uma mão na frente e outra atrás, sem caixa, depois de muitos anos de formada, enquanto outros já tinham galgado seus cargos e feito suas poupanças, tendo me divorciado poucos anos antes e com os nervos à flor da pele. Tudo que eu contive durante a doença de minha mãe, até a hora de sua eutanásia (admitida por lei e por mim presenciada), estava explodindo no meu comportamento social.

Fiquei sem trabalhar por achar que, caso assim o fizesse, mataria alguém sem querer. Eu não poderia manter minha mente normal naquele tempo e ninguém podia correr este risco comigo. Pena que eu não podia pedir licença de doença, pois não estava fisicamente doente e nenhum seguro me ampararia. Mas, como eu sou uma fortaleza, eu teria tudo de novo. Imaginei que reconquistaria fácil meu lugar ao sol e me manteria financeiramente.

Assim que voltei ao meu dia-a-dia, a então secretária, após voltar de férias, sentou ao meu lado e disse: “Preciso falar uma coisa...”.

Eu sabia que ela queria ir embora. Não era preciso ser inteligente para isso. Foram muitos anos com ela, desde o tempo que era muito jovem. Nada lhe faltou, fomos muito amigas, mas eu voltava de uma situação que poucos saberiam entender.

Eu estava nervosa, estressada, cansada e pouco receptiva, porém, jamais deixei de pagar algo para minha funcionária. Todos os seus direitos empregatícios foram cumpridos, mesmo que ela não estivesse trabalhando, mesmo que fosse ao consultório apenas para limpar uma mesa e atender ao telefone – por um ano...

Nos tempos das vacas gordas esta secretária ganhava o dobro do que eu era obrigada a pagar em folha, a título de gratificação. Mantive esta promessa durante minha ausência no trabalho, mas, ao retornar, e sem dinheiro, disse que só ia pagar aquilo que rezava em carteira e de minha obrigação, até eu poder me reerguer. Não se podia ter comissão se não havia lucro.

Esta antiga funcionária nunca teve contato com a dificuldade do mundo de hoje. Não sabia das dificuldades de emprego por aí. Ela já tinha passado da fase de ser aceita em qualquer lugar por causa da idade e não tinha preparo para o mercado. Eu a instruí para minhas necessidades e não pensava que um dia desejaria me abandonar.

- “Quero arrumar um serviço aonde eu ganhe mais... Estou fazendo um curso de computação...”.

- “Atenção, amiga! Existem milhares de pessoas desempregadas com formação universitária! Você não conseguirá competir com essa gente. Até porque você passou dos 40, não se formou em faculdade, tem que criar sua filha e deverá pagar uma empregada para cuidar dela, coisa que não precisa aqui, por causa do horário.

Minha situação vai demorar para ser solucionada, mas veja as coisas pelo lado da recessão! Não estou deixando de lhe pagar nada que diz em lei. Apenas estou precisando de ajuda. Vamos dividir as dificuldades, como sempre foi até hoje”.

- “Não... Eu vou conseguir um salário melhor... Gosto muito de você, mas eu preciso ganhar mais dinheiro”.

Tiravam meu tapete do chão e eu estava em cima dele. Eu precisava trabalhar dobrado e fiquei sem minha auxiliar de repente. Qualquer pessoa que ali trabalhasse ia me atrapalhar mais do que ajudar, pois não saberia sobre minha rotina.

Fiz a demissão. Um dia sentei na minha mesa, que tem um tampo de mármore azul labrador, ou azul da Noruega, que foi construída ao meu jeito, com os detalhes que eu queria, para enfeitar o exato lugar de decisões importantes sobre a vida das pessoas. Olhei para aquele azul brilhante e fiquei hipnotizada, olhando minha vida passar. Em um só momento fui travada por contratempos burocráticos. Cada vez mais eu me sentia uma recém-formada, sem pai, nem mãe.

Tive várias secretárias em período curto de tempo, todas despreparadas, apesar de boas pessoas. Só uma é que realmente me tirou das tamancas, pois queria cantar de galo no meu galinheiro. Ela foi literalmente expulsa da minha sala assim que me respondeu mal, quando eu descobri irregularidades sérias que cometia. Eu já ia a dispensar mesmo, em comum acordo, mas naquele dia tinha se comportado irregularmente e não podia continuar trabalhando para mim.

Ao sair pela porta a tal secretária, ao mesmo tempo recebia a senhora Dejê, que presenciou a situação constrangedora:

- “O que você quer?”.

- “Trabalhar, ora! Vim aqui porque me chamou para uma entrevista”.

- “ Chamei, é?... Devo ter chamado... Senta aí nesta mesa. Só atenda ao telefone; apenas diga que eu não posso atender, nem você pode marcar consultas, que não pode fazer nada! Ao final do dia eu combinarei contigo, se quiser trabalhar aqui. Se não quiser, eu pago o dia. Combinado?!’.

Ela olhou para mim, num misto de assombro e riso amarelo, e acatou prontamente. Eram muitas pacientes e eu fazia a burocracia toda sozinha lá dentro, além de ter que atender como médica. Eu só ouvia Dejê falando ao telefone, toda assustada e abrindo portas. 

No final do dia sentei no sofá e me desabafei. Falei de minha vida resumidamente e da necessidade de estar ao lado de alguém que me compreenderia, pois eu já estava a ponto de desistir de trabalhar fazendo medicina em consultório.

Dejê perguntou evasivamente sobre como preencher fichas e limpar material, como se nada do que eu falasse estivesse fazendo diferença para ela. Vinha de um trabalho que não tinha nada a ver com medicina, muito menos atendimento em consultório. Não tinha nenhum preparo para aquilo. Mas como eu sempre primei pela personalidade e caráter em primeiro lugar, achei que isso não seria impedimento nenhum. E não foi.

Durante meses eu preparei Dejê para chegar aonde eu precisava. Ela faz durante esses anos que se passam muito mais do que eu exijo. É a melhor secretária que tive em todos os tempos, a mais honesta, a mais prestativa, a mais amiga. Eu não entendia como ela conseguiu vencer a barreira do meu mau humor.

Aí, em alguma ocasião que não lembro, ela explicou a razão de não ter se retirado imediatamente de minha sala naquele primeiro dia:

_ “Se dependesse de sua recepção, eu teria ido embora no mesmo momento, mas lembrei que era dia 6/6 de 2006... Desde menina eu achava que ia acontecer algo de bom neste dia, e a única coisa marcada para ele era aquela proposta de emprego. Nem sabia que ia trabalhar assim que chegasse. Fiquei... e valeu a pena”.

Ontem ela me deu carona no carro de seu marido Paulinho, um amigão também. Eles me deixaram no supermercado, após um dia de trabalho. Não sei bem o que conversamos, mas ela disse que nossas mães, duas doidas, deviam ter se encontrado no céu para perpetrar nosso encontro.

Tudo de engraçado que acontece no consultório, e isso é uma constante, fazendo com que ela me peça pelo amor de Deus para parar de falar; todos os lugares bonitos aonde vamos juntas; em qualquer acontecimento exótico, pensamos que nossas mães gostariam de estar participando conosco. Foi assim ontem dentro do carro:

- “Aquelas duas devem estar juntas rindo da gente e loucas para estarem conosco”.

Não... Dejê não é mais minha secretária. Eu a demiti desse cargo. Ela é minha irmã, a razão da minha tranquilidade profissional e até pessoal. Faz mais por mim do que muita gente fez e deveria ter tido obrigação de fazer. É uma sócia na lida da vida.

Leila Marinho Lage
setembro de 2008
http://www.clubedadonameno.com