Clube da Dona Menô
Dona Menô
Feijoada sueca
 
Telma é tradutora e intérprete, trabalha na Suécia e é casada com um sueco. Dessa relação tem um filho de oito anos. Ela conversava comigo sobre comida de casa, quando ainda estava junto de sua mãe. Eu falava como o sabor das situações da vida tempera a comida e como um dia isso pode deixar de ser vivido. Essa conversa martelou a cabeça de Telma e ela lembrou da feijoada que sua mãe fizera num dia de frio num domingo muito acolhedor e em família.
 
Tentou reviver aquele momento. Não  teve dúvidas: ligou para sua mãe no Brasil para saber como se faz uma feijoada. Dentre o amontoado de canetas que tem em sua casa, não encontrava uma caneta decente para escrever, já que em casa só se usa notebook, e caneta já é quase pré histórico. Enquanto sua mãe explicava, celular tocava e ela, toda confusa. Mas a feijoada era sua meta principal naquele momento. Ela escreveu detalhadamente a receita, já que não cozinha muito bem e está sempre comendo fora por causa da profissão.
 
Foi ao supermercado e procurou pelos ingredientes,  mas não encontrou carne de sol e paio. Puxa vida! O melhor da feijoada não havia. Ligou para mim, que recomendei o supermercado estrangeiro. Lá não encontrou também e novamente me pediu socorro. Eu disse que a feijoada não ficaria do jeito que deveria, mas tudo também...
 
Volta pra casa; estaciona o carro; pega as sacolas; escorrega na neve, espalhando tudo pelo chão. Recolhe tudo. Ao sair do elevador vai pegar a chave da porta de casa; coloca as coisas no chão -  tira celular da bolsa, óculos, pente, os batons, o absorvente. Neste exato momento entra o vizinho e a flagra com o absorvente na mão. Pega a chave; coloca tudo de volta na bolsa; abre a porta; coloca tudo no chão; tira casaco e as botas; entra em casa, já morta deste tour pelos supermercados.
 
Naquele sábado o marido e o filho ficam no quarto, a pedido dela, para que possa preparar o almoço desejado, e promete um almaço surpresa para família.
 
Coloca as luvas, enquanto o marido e filho se divertem nos joquinhos do computador. Ela tenta ficar feliz com o sorriso deles, mas estava sendo uma mistura de raiva por ter inventado ficar na cozinha como "Amélia".
 
Corta paio, corta a linguiça. Argush! Esqueceu de colocar o feijão para cozinhar. Coloca feijão na panela (Ave Maria! Na Suécia  não há panela de pressão!). Continua cortando as carnes. Quando vai cortar a costelinha, escorrega e cai no chão. Olha em direção ao marido e filho, que continuavam no quarto. Pega a carne, joga junto as outras e pensa: "O que não mata, engorda".
 
Vai ferventar as carnes para tirar o excesso de gordura e, ao abrir a tampa da panela, queima o pulso no vapor e pensa: "Minha mãe é que era mulher de verdade. Passar por tudo isso e ainda manter aquele sorriso por ter a família reunida".
 
Continua no seu árduo trabalho. O fogão fica sujo como o caldo do feijão preto que escorreu da panela. Limpa aqui, limpa ali... Prepara o vinagrete de tomate, que para nós é o molho à campanha: tomate e cebola cortadinhos, com vinagre, azeite e água. E pensa na couve manteiga. Feijoada que se preze precisa de carne seca, paio e uma couve refogada, de preferência, aquela que mamãe corta na mão, bem fininha, que até parece linhas verdes. Mas agora é diferente e terá que inventar o seu próprio momento memorável familiar para que eles um dia possam sentir saudade de sua comida.
 
Prepara mesa, caipirinha... Cadê a farofa?! Corre e faz a farofa, até porque nos supermercados estrangeiros vendem farinha, mas aquela farofa prontinha, ainda não...
 
Farofa pronta!  Agora tem que cuidar de seu visual afinal. Depois de todo trabalho ficará bem se sentar à mesa, ao lado do marido e filho, cheirosa e bem arrumada. Vai para o banheiro e volta, respirando fundo para encontrar um pouco de energia. Senta e saboreia a feijoada que gastou toda sua energia em um domingo com neve.
 
Chama pelos seus convidados. Eles aparecem, olham para a mesa e o filho pergunta:
 
- "Mama, não tem korv?" - salsicha com pão, comida típica de jovens suecos.
 
- "Tem, filho. Está feijoada".
 
- "O que é feijoada?".
 
- "Comida brasileira".
 
 O marido percebe a decepção da mulher e sugere:
 
- "Filho, vamos comer? Isto deve estar muito bom, comida preparada pela mama".
 
Ela saboreia sua primeira feijoada e vê o marido se levantar e ir até a geladeira, voltando com um frasco de catchup e
colocando em sua comida. E ainda ouve o filho dizer:
 
- "Papa, eu também quero catchup".
 
Desanimada e sem forças, nem protesta, porque depois de todo trabalho, catchup na feijoada é de trincar o osso da cara!!! 
 
Gislânia Dornelas
Stockholm, setembro de 2008

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(Acredite e tudo acontecerá)
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