Clube da Dona Menô
Dona Menô
Getsemani



 
Ela tinha uns seis anos ou menos. Ficava sentada na cozinha olhando o quadro verde escuro, com a imagem de um homem sentado em um monte, solitária e tristemente olhando árvores ao longe, na penumbra, onde somente um pequeno formato de lua aparecia claramente entre as nuvens. Um manto branco e escuro num quadro que já perdera a cor, que denunciava o gasto tempo daquela cena.
 
A tristeza da tela se confundia com a vida daquela criança, que ali surpreendia sua mãe olhando pensativa o Homem tão triste quanto ela. Em silêncio, sozinha na madrugada gelada da cozinha, a mãe se refugiava para rezar - ou apenas pensar, quem sabe?...

- “Mãe, o que faz aqui?”.

- “Nada... Vai dormir”.

- O que olha neste quadro? É Papai do Céu, né?”.

- “É...”.

A menina ficou curiosa. Tentou comer tomate com açúcar, mas a mãe a impediu, uma vez que ela já tinha ficado amarela de tanto comer tomate e até foi levada ao médico por isto. Ninguém imaginava que ela comia muitos tomates com açúcar ao longo do dia. A menina gostava de pão com açúcar e manteiga também, mas diziam que nenhum ser humano normal fazia aquilo. Então, ela decidiu sentar ao lado da mãe e conversar sério pela primeira vez na vida com a sua deusa, como uma adulta:

- “O que Ele tá pensando aí neste quadro?”.

A mãe, olhando para a filha, mas com ar perdido em devaneios, disse:

- “Ele pensa na sua morte. Ele vai ser traído por Judas, que foi um amigão no passado. Ele comeu bem pra caramba, numa mesa em que amigos brindavam, inclusive com seu discípulo traidor. Agora Jesus, através de um recadinho de Deus, entende que vai morrer sofrendo”.

A menina ficou estarrecida: 

- “Nossa!!! Traído como?! Por que ele não chamou a polícia?”.

A mãe procurava explicar exatamente o que acontece nos dias de hoje:

- "Ele apenas queria que o Espírito Santo entrasse no nosso coração. Para isso precisava morrer muito feio”.

- “Não entendo...”.

- “Nem eu...”.

- “Mãe, por que Jesus não foi embora, fugiu? Ele estava sozinho e era de noite! Ele iria se safar rapidinho!"

- “Ele falou com Deus, a força maior de todas as forças dess mundo. Ele precisava passar por aquilo. Mas, saiba, ele foi humano naquele dia, como qualquer um. Teve medo e até pediu arrego...”.

- “Que aconteceu?”.

- “Sei lá... Acho que primeiro ele suou sangue ou chorou, não lembro. Depois Ele falou alguma coisa como: “Afasta de mim este cálice, se for de Tua vontade, Pai”.

- “Ele bebia?...”.

- “Que isso, guria?! Ele até que dava uns goles em um vinho, mas apenas para fazer tipo...”.

- “Eu não entendo nada... Não entendo Ele estar ali sozinho, sabendo que ia morrer”.

- “Filha, este lugar é o Monte das Oliveiras, árvores de azeitonas. Lá é Jeruzalém, a terra Dele. Ele ia sempre rezar lá. Naquele dia Ele esteve com Deus, e, apesar de estar com medo, sabia que não tinha outro jeito”.

- “Eu não gostei desta história, mãe. Isso me faz perder o sono e eu vou ter pesadelo. Eu prefiro o Tesouro da Juventude”.

- “Então, sente aqui que eu faço um pão com manteiga e açúcar pra você”.

- “Prefiro tomate com açúcar...”.

- “Não!!! O médico disse que você se intoxicou com esta merda!”.

- “Que é que tem fazer xixi amarelo?!”.

- “O que tem é você ficar amarela que nem um canário, idiota!”.

A menina não gostava de comer. Existia uma mangueira de borracha pendurada na parede ao lado do quadro. Toda vez que a menina se recusava a tomar sopa, a mãe ameaçava bater nela com a borracha - que jamais saiu da parede. A menina olhava a mangueira e olhava para o quadro, e se identificava com os dois - ela se sentia ameçacada e injustiçada, na sua inocência.

Por muitos e muitos anos aquele quadro esteve na cozinha. O quadro passou de uma casa pobre para outra mais bonita, mas continuou perto da cozinha, na copa, talvez por acharem que ele era muito feio e velho. A menina esqueceu dele ao longo dos anos. Todos esqueciam daquele quadro velho, que nem limpo era, pois ficava muito alto, quase no teto. A menina se tornou moça e depois mulher. Uma vida que passou embaixo daquele quadro. O HOMEM olhou muitas alegrias em família, mas chorou com as tristezas e dramas. Ele viu horrores tão imensos quanto a sua própria dor. E Ele velou por aquela família, mesmo ignorado numa parede, enquanto sofria com as tragédias que se seguiam às suas.

Um dia a casa ficou vazia. Ninguém mais comia na copa ou na cozinha. A mãe não aparecia, a filha também não. O quadro não entendia o que estava acontecendo, até que a menina-mulher subiu numa escada e o pegou. Ele foi parar noutra cozinha, agora apenas com a menina olhando, olhando... Ela falava sozinha e chorava. Pedia a Ele que protegesse a mãe, seja onde ela estivesse. Pedia também que, se fosse da vontade do Pai,  a protegesse.

O quadro passou a ser lembrado, sempre procurado, sempre acompanhado, sempre em companhia da menina-mulher que pedia para que os seus cálices fossem afastados. Hoje aquela imagem mudou de lugar. Agora mora em destaque. Não por ter sido escolhido um altar para ela, mas porque de todas as riquezas da casa da velha menina, o único objeto que mais tem valor e que mais representa a história dela é o Getsemani.

Leila Marinho Lage
Rio, 14 de agosto de 2008

http://www.clubedadonameno.com

“O Senhor é meu Pastor, nada me faltará.
Em verdes prados Ele me faz repousar.
Conduz-me junto às águas refrescantes;
Restaura as forças de minha alma.
Pelos caminhos retos Ele me leva
Por amor do Seu nome”.
(Sl 22,1-2)