Clube da Dona Menô
Dona Menô

Efeito Moral



Eu estava saindo da minha sala. Mais um dia comum de trabalho. O prédio estava excepcionalmente vazio e silencioso. Dezoito horas e não se via viva alma no corredor.

Sempre olho pelo visor para fora antes de abrir a porta. Naquele dia não olhei e não ia adiantar. Apenas, como é de costume, eu saí falando alto, despedindo-me da secretária. Falei alto? Não... Muito alto: “Beijos e fica bem. Até amanhã!”. Deve ter ecoado pelo corredor inteiro

Andei uns 7 metros e me plantei em frente ao elevador, que estava no térreo. O prédio é todo vigiado com vídeos até nas escadas. Eu até me esqueço deles, mas foi um bom investimento.

Já houve naquele prédio um estupro há muitos anos. Todo mundo soube no dia seguinte. A vítima passou a ser a culpada. As pessoas davam risadas e faziam comentários maldosos, como se ela fosse a criminosa.

Voltando à minha história:

Lá estava eu, esperando o elevador, tranquila e distraída. De repente, dois rapazes muito bem trajados, mas suados, descabelados e muito nervosos, vieram correndo das escadas e quase me imprensaram na porta do elevador. Pareciam apressados ou estavam fugindo de alguma coisa.

Mais que de repente, eu segurei por dentro da bolsa uma faca de acampamento - minha companheira de anos. Na verdade, uma peixeira de mais de vinte centímetros, com acessórios para abrir latas, serrar coisas e o escambal. Linda... Foi uma nota.

Deixei minha amiga dentro da bolsa, mas esta me dava um certo efeito moral. Não sei como eu faria se tivesse que a usar. Só que eu pensei que os homens estavam querendo me pegar no elevador, e comecei a “viajar“ na neurose. Imaginei que iriam me levar para outro andar, onde estariam mais outras pessoas, e fariam tudo o eu era possível fazer. Também achei que poderiam me levar de novo para minha sala, ou me render lá embaixo na portaria, para assaltarem ou fugirem de algo.

Não deu medo, nem me senti nervosa. Nessas horas eu não tenho nem taquicardia. Parece mentira, mas algo me protege. Pode ser que minha profissão tenha regulado a hora de ter descompensações. Eu olhava de lado e para baixo, e eles faziam o mesmo. Não falavam entre si, mas eu sabia que estavam juntos. Muitíssimo suspeito.

A porta do elevador se abriu. Pensei em dar “te loguinho” para o vídeo. Ponderei. Seria burrice minha chamar atenção para o meu único aliado. Eu estava num cubículo, imprensada entre dois caras e eu não sabia o que queriam de mim. A qualquer atitude mais suspeita, com certeza, eu iria meter a faca na jugular de um. Ah, se ia.... Depois digo o porquê.

Bem, foram segundos de suspense igual a muitos que já passei. Desta vez, eu estava totalmente calma e atenta. Sabia que eu não deixaria de graça se aqueles estranhos me atacassem.

E se o porteiro não estivesse olhando? E se eu enfiasse a faca em um e o outro a enfiasse em mim? E se fosse um assalto em grupo e todo o prédio estivesse rendido? E se eles quisessem me comer ali mesmo?!

Tentei me concentrar e ter calma. Os andares passavam e eu ia descendo ilesa, mas com a faca amiga na minha mão, dentro da bolsa para que não vissem. Eles olhavam para o chão e para mim de soslaio (suados, descabelados...). Estariam drogados?

A porta no térreo se abriu e vi o chefe dos porteiros - um homem de uns dois metros – com a mão espalmada em sinal de pare, a me ordenar que saísse e que os dois continuassem lá dentro.

Eu saí e os três subiram.

Perguntando ao outro rapaz da portaria, soube que os dois estavam transando nas escadas e não sabiam do “Big Brother” pelo qual passavam. Estavam subindo para limpar os vestígios de amor que deixaram. Ainda bem que o porteiro teve a bondade de deixar que os meninos se amassem até o explodir dos sentimentos...

Coitados, estavam apenas se amando! Eu, com minha voz estridente, atrapalhei aquela paixão desenfreada e poderiam ter sido punidos pela faca dos infernos, caso eu me sentisse ameaçada...

Esta faca já me deu problemas e, também, já me salvou de muitas, aqui, no “Rio que continua lindo”. Ela serve para abrir pacotes de Coca-Cola no supermercado, acondicionadas naquele fatídico plástico que as une, quando a gente quer levar só uma; já tirei muito cartão magnético entravado no caixa eletrônico; roubei muita planta no mato. Até cortei coleira de cachorro que estava quase enforcado no poste!

O pior é que eu esqueço de a tirar da bolsa quando vou aos bancos. Até hoje não sei se realmente aquela porta nojenta sabe mesmo detectar metal. Quando a porta do banco trava, eu tiro tanta coisa de dentro da minha bolsa que o guarda desiste. Claro que se me pedirem para tirar mais, eu já tenho até uma carta na manga: Digo que é um DIU de cobre dentro de mim. Será que pega?....

Um dia aí, no banco, eu fui pega. PQP, que situação! Eu fui num banco nojento, com uma porta nojenta, com um vigia nojento que me barrou. Eu não estava num bom dia. Ia pagar uma conta atrasada numa fila nojenta e demorar, pelo menos, duas nojentas horas.

Falei logo para o nojento: “É só uma faca”. Ele me olhou como se eu fosse uma doida. Por que seria?!

O leão de chácara me perguntou por que eu portava uma arma branca. Falei que não era arma, muito menos branca: era preta e prata. Argumentei que eu era médica e ela servia para cortar pizza no plantão - mais uma das mil utilidades da minha parceira.

Eu me senti no aeroporto de Nova York ou de Portugal... Fui para o balcão de atendimento, depois de protestar muito por ter que deixar a faca com aquele brutamontes e recomendar que não sumisse com ela.

Fiquei apenas dois minutos na fila, que estava enorme. Não paguei conta nenhuma. Sou impaciente e aquilo não era pra mim. Desisti. Foi aí que o meu observador achou mesmo que eu estava de má intenção com a faca.

Como eu tenho o direito de ir e vir, e não estava ameaçando ninguém com meu brinquedinho, ele a devolveu e não falou nada, mas saí do banco sendo acompanhada por seus olhos desconfiados.

Não me perguntaram ainda porque tanta neurose. Até estou estranhando vocês...

Abril de 1984:

Eu era feliz e não sabia. Problemas fáceis de serem resolvidos, vida mansa, sustentada pelo papai, com um empreguete vagabundo e um consultório com tudo para ser próspero.

Naquele tempo eu tinha tempo de ir a congressos e viajar. Uma maravilha: bonita, sem preocupação na vida, uma incondicional sonhadora. A política do país se agravava. A violência no Rio estava tomando grandes proporções e eu não me dava conta disso. Eu vivia no meu mundinho particular, com um estetoscópio no pescoço e um sonho no coração.

Para economizar tempo, é bom alertar que na época não se falava em delegacia de mulheres ou de central de táxis por telefone.

Eu participava de um congresso de sexologia. Assisti a uma palestra sobre estupro e sobre o perfil dos estupradores. Chamou-me a atenção um professor que fez um alerta em especial: A vítima deve tentar “seduzir” o agressor, em caso de nada se poder fazer - tentar o diálogo e causar piedade.

Ao final do dia, eu e um amigo fomos para a rua e o mesmo me deixou em um táxi que parou metros à frente de nós, talvez propositalmente, para o amigo não ver quem guiava.

No caminho eu percebi que o motorista tinha um comportamento estranho: dirigia em zigue-zague, saía do trajeto, enquanto eu reclamava. Era noite e chovia muito. Perto do local onde eu ia ficar, num lugar muito deserto, ele falou que o pneu devia estar furado e teria que verificar.

Eu falei que ali era perigoso para parar. Ele falou que não havia problema porque portava um revólver, mostrando uma arma na cintura. Ele fechou as portas, os vidros e saiu. Verificou, realmente, os quatro pneus, lentamente, enquanto eu começava a pensar no que ia acontecer a seguir. Ele sondava a presa.

Mais uma vez eu não senti nada, nem um aceleramento da minha pulsação, nada. Apenas pensava no dia seguinte. Em segundos me passou uma vida toda pela frente. Vi na minha mente uma página de jornal com o título: “Médica estuprada e morta por taxista”.

Como podia?! Depois de vinte e seis anos de vida, uma vida de alegria, criada para ser uma pessoa bacana e honesta, com o sacrifício de minha família, tendo um mundo de esperanças pela frente, de repente um cara, gerado como eu, parido como eu, me tiraria a vida e terminaria minha trajetória, estuprando e matando-me!!! Foram os instantes mais longos da minha vida até aquele momento.

Ele entrou no carro, virou para mim e perguntou: “Você já transou num carro?...”.

Passava, então, na mente a aula que eu tinha acabado de assistir. Eu falei para o crápula que o meu marido tinha acabado de me deixar no táxi e eu recebera alta do hospital, pois estava grávida, com ameaça de aborto.

Ele me perguntou: “Mas, como?! Não vejo barriga nenhuma!!!” (Essa foi a parte boa...). Imediatamente eu estufei o abdome, mas, naquela época, nem forçando a barra eu pareceria grávida. Disse que estava de três meses, que não se via barriga, e assim por diante.

Ele se contentou em passar a mão por meus seios, enquanto segurava a arma com a outra mão. Ele na frente, no seu lugar, e eu atrás. Não me vinha qualquer reação, além de ficar anestesiada, pensando na página do jornal, juro.

Foram alguns segundos apenas. Eu pensei: “Poxa, eu não vou acabar assim de jeito nenhum. Tenho que fazer alguma coisa antes de me debater e lutar até morrer”. Ou será que eu não teria coragem e me deixaria ser violentada para, pelo menos, salvar minha vida? Ai!! Nem quero pensar nisto agora...

Eu fiz um enorme esforço para chorar, até porque não vinha uma lágrima! Eu leue que estava sangrando e isso iria prejudicar meu bebê. Foi a palavra chave para aquele tarado – sangramento.

Depois me falaram que ele poderia gostar disso, mas nada mais me vinha à cabeça. Eu só pensava, então, na forma de morrer e na humilhação de ser abordada por um qualquer naquela situação.

Ele pulou pra trás, como se estivesse com nojo, e disse rapidamente que me levaria para o lugar que eu quisesse e só me cobraria a rodada no taxímetro. Pedi para ser levada até a loja de um amigo, próximo do local. Ele me alertou que eu não olhasse para a placa do carro, senão me encheria de tiros.

Os amigos me orientaram a fazer um retrato falado dele e o procurar nos pontos de táxi da rodoviária e aeroportos. Não fiz nem uma coisa nem outra.

Nunca, antes de agora, nesta carta, eu falei sobre os detalhes daquela noite. Eu não tinha lesão corporal nenhuma. Eu tinha medo de ser debochada pelos policiais na delegacia. Sabia como seria abordada por esses caras...

Eu não queria falar para ninguém sobre o que aconteceu. Falei para minha família apenas meia verdade. Eles morreriam se soubessem da humilhação. Vergonha, medo, humilhação e - pasmem - culpa, foram as marcas que me deixaram naquele dia.

Eu fico imaginando a situação insólita de um homem sendo violentado por uma mulher suja e fedorenta, apontando uma arma para a sua cabeça (de baixo ou de cima). Como seria se o homem, considerado ativo num ato sexual, tivesse que levantar o dito cujo para ser seviciado? Todos morreriam! Se não de morte morrida, pelo menos, de vergonha: “Perdeu! Perdeu! Levanta essa coisa mole aí, senão leva chumbo!”.

Meses depois, lendo o jornal, minha mãe me mostrou a cara do tarado. Era o mesmo. Eu me lembraria dos detalhes todos do rosto e do cabelo: aqueles olhos, a cor da pele, o nariz, a voz. Tudo ficou nos meus pesadelos por muito tempo. Imaginem se tivesse sido pior!

O jornal o acusava de ter estuprado várias mulheres em seu táxi, inclusive a sua promotora. As vítimas se uniram para o processar. E pensar na época em que as mulheres precisavam da autorização do marido para se fazer uma queixa por estupro...

Tempos depois, ele aparecia na TV, numa reportagem. Acontece que ele fugiu da cadeia, continuou estuprando no mesmo táxi, morando na mesma casa, e depois sumiu, preso de novo. Eu não soube do seu fim, nem se está vivo ainda.

Por duas vezes este animal se salvou. Primeiro, por minha ignorância, e segundo, pela displicência da polícia. Espero que tenha morrido. Pessoas assim não podem ser consideradas humanas e não podem viver em sociedade. São psicopatas e sociopatas.

Ele fazia ponto na rodoviária. Eu o teria pego. Algumas mulheres não teriam passado pelo que, graças a Deus, eu não passei.

Depois disso, resolvi ter mais cuidado com táxi, aliás, com tudo. A faca surgiu daí.

Eu atendo muitas mulheres que passaram por tal situação. Sei o que passa na cabeça delas e sei o quanto isso é humilhante. Da minha parte eu garanto que hoje ninguém me ataca sem minha resistência, nem que eu morra sofrendo. Se eu puder matar, eu mato.

Por outro lado, a arma de fogo é, como todo mundo sabe, uma “faca” - de dois gumes. E se a gente não souber usar ou não tiver condição de a usar, podemos morrer do próprio veneno. Da mesma forma que eu posso ter uma arma, o agressor pode ter uma e mais potente, além de estar preparado para o ataque, coisa que provavelmente a vítima não está. Ainda mais se o maluco estiver drogado, quando não se mede o perigo e quando a “valentia” vem à tona...

É por isso que as pessoas estão se escondendo cada vez mais em suas casas e desconfiando até da própria sombra. Estão ficando neurotizadas e amedrontadas. Proíbem seus filhos de sair, para protegê-los, criando uma legião de futuros fóbicos ou revoltados.

Não sei qual será minha resposta para este referendum do dia 23 de outubro de 2005, sobre a liberação do comércio de armas. Existem várias nuances da coisa, desde as mais simples às mais complicadas, que envolvem a política, a segurança e o comportamento social.

Como a maioria das pessoas nesse mundo, eu já tive vontade de matar num momento de ódio. Talvez não chegaria até o fim, mas, tendo uma arma, seja ela qual fosse, em minhas mãos, se o momento em meu cérebro fosse propício, e se o dedo em uma arma de fogo escorregasse só um pouquinho, eu seria uma assassina.

Vejo a arma como uma forma de autoproteção, mas como selecionar o que é autoproteção em um segundo? O que seria daqueles dois gays que se amavam - não interessa que num lugar público -, se um deles me perguntasse as horas naquele elevador?

A arma é uma faca de dois gumes. Sei que dá o efeito psicológico de proteção, no entanto existe o instinto humano, as emoções que nos traem.

Hoje temos entre jovens um enorme número de mortes por assassinato. Acho que ainda é a principal causa de morte de jovens na cidade grande. Os médicos conhecem a arma pelo buraco que fez no doente, ao entrarem numa emergência. Médicos tornam-se verdadeiros peritos da bestialidade humana. As crianças conhecem qual a arma que está atirando lá na esquina, como se fossem fogos de São João e como se não estivessem tão perto delas.

Isso parece guerra, onde as pessoas têm que conviver com a tragédia a qualquer momento. Adaptam-se a ela porque não há outro jeito.

Esta eleição está muito em cima e não vejo as pessoas conversarem entre si como eu gostaria.

Considerando que a maioria da população nem liga para o que se fala nos debates em televisão ou na Internet, e só usam jornal para embrulhar coisas, ler a página de crimes ou a parte de esportes;

Considerando que não será, provavelmente, a nata da sociedade que vai dar o primeiro tiro;

Considerando que é preciso o debate justamente entre quem possivelmente pode matar (o cidadão comum), e não existe informação suficiente das leis atuais;

Considerando que esta votação é importante, tanto quanto outros plebiscitos que poderiam ser feitos;

Considerando que o povo precisa saber em que votam e o por quê votam;

Considerando que todos nós estamos sob pressão e, assim, cada um vota com o impulso e não com a razão;

Eu sugiro:

Pressa nas informações.

Pressa em sabermos todos os detalhes desta lei.

Pressa em alertar toda a sociedade.

Pressa em tomarmos ciência para que serve esta lei e quem será prejudicado ou beneficiado com isso.

E, por obséquio, indiquem-me um lugar onde eu possa comprar aquele aparelhinho que eletrocuta os outros...


Leila Marinho Lage
Rio, 15 de novembro de 2005
http://www.clubedadonameno.com