Clube da Dona Menô
Dona Menô
O homem atrás dos óculos

 
Tudo começou quando eu sentei ao lado de Drummond... Sempre sento ao lado de meus escritores e artistas prediletos, sejam vivos ou mortos.

Essa de escrever, função nova em minha vida, me dá chance a desenvolver coisas esquecidas, como olhar para o lado. Sim, hoje para tudo que olho existe uma crônica ou opinião escrita embutida. Sempre penso: "Isso dá uma crônica...". Por isso começo meu samba de crioulo doido, que talvez só o cariocão vá entender.

Obviamente, se eu procurar por aí, vou encontrar vários artigos sobre o roubo dos óculos de Drummond. Não, na verdade são 5 furtos de óculos da estátua deste escritor, se não estão neste momento roubando pela sexta vez. Cheguei a tirar uma foto com o quinto par. Neste texto estou ao lado do atual. Ou não? Não sei mais...

Estou no mês de julho de 2008, numa época que o Rio de Janeiro venera NADA. O nada cultural. Vemos igrejas seculares lambuzadas com a arte de trogloditas que não lutam pela sobrevivência com tanta dignidade quanto nossos ancestrais; monumentos maravilhosos, lindos, de darem inveja a qualquer país, sendo destruídos pela falta de responsabilidade (ou melhor, falta de vergonha e competência) dos governantes.

Sabem quanto custa a substituição dos óculos de Drummond? Uma baba. Mais caro que um Ray-Ban legítimo, um Versase, um Givenchi e um Valentino juntos. Na era moderna Drummond preferiria lentes de contato, se bem que tiraria totalmente o romantismo da aparência do escritor. O pai dele usava óculos (e um bigode). Drummond fez jus à genética.

Lá está Drummond, tão cantado aos quatro ventos, até mesmo na Internet, tão magrinho e circunspeto, tal como foi sua etapa final neste mundo, tentando confabular com quem ao lado dele ousa sentar. Sozinho em Copacabana, a metros de um forte cheio de militares, de costas para uma das praias mais lindas do mundo, na madrugada fria - mais precisamente de costas para o litoral mais magnífico do planeta.

Durante o dia ele é disputado por turistas e moradores do subúrbio "pobre", em frente a filas de máquinas fotográficas. Talvez seja a segunda estátua mais visitada do país, sendo a primeira a do Cristo Redentor, ali, bem pertinho dele. Mesmo assim, ele está ao relento nas noites solitárias da metade do ano, sendo castigado pela maresia e pelos vândalos (será que são vândalos?). Seria fácil colocar uma cabine policial ao seu lado. Talvez assim ele teria companhia, mas, certamente, esta cabine seria metralhada tão facilmente quanto retirar uma peça de uma estátua tão famosa.

Tal como acontece este absurdo nas barbas do povo e do policiamento, observamos que outros monumentos de igual ou maior valor vêm sendo deteriorados pela ação do tempo e pelo descaso. Não se pode exigir que uma população tão mista e tão indiferente faça valer seus direitos e cumpra seu dever de cidadã. É impossível ter força diante das diferenças e de tantos interesses.

Senão, vejamos:

No centro da cidade encontramos igrejas lindas e estátuas que são diariamente pichadas e quebradas. Séculos de história. Quando não se consegue prender e reprimir meia dúzia de pivetes a coisa está realmente feia... Décadas de nossa história sendo apagadas pela ação de imbecis - os que praticam e os que deixam que isso aconteça.

Como controlar o incontrolável? É só analisar o que se faz pelos mendigos, outros que são monumentos, com a diferença que estão vivos. E crianças na primeira infância, que fumam, cheiram e roubam. Ah, sim, basta deixarem fazer acrobacias no semáforo, em frente a nossos carros, ameaçando os motoristas com jatos de sabão no para-brisa... É só fechar o vidro e sair em retirada o mais rápido possível ou pagarmos uma moeda pela salvação da lata recentemente lavada.

As prostitutas da Vila Mimosa estão acabando. Elas estão se aprimorando e procuram lugares mais elegantes na zona sul. A "Zona" é igualzinha a qualquer bairro simples do Rio, porém, um dos mais destacados em questão de segurança - não se pode ter prostituição aonde não se pode deixar seu carro com as janelas abertas. Se querem tomar uma cervejinha tranquilamente, sem preocupação com ladrão, é só irem ao baixo meretrício. O comércio é bacana, muitas firmas idôneas funcionam ao lado do sexo, muitos empresários possuem negócios por lá e todo mundo está na sua.

No entanto, no jardim zoológico os bichos estão magros, a vegetação está amarela, o elefante está muito velho, as aves e os felinos se encolhem. O macaco Tião, nome dado em homenagem à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, símio que fazia sacanagem das "brabas", há 12 anos poderia até ter sido deputado, eleito com 400 mil votos. Hoje ele seria superado facilmente por políticos que hipnotizam o povão com cestas básicas, promessas de empregos, mutretas na legislação e facilitação em obras irregulares.

A Barra da Tijuca e o Recreio estão repletos de elegantes condomínios, ao mesmo tempo que convidam célebres desconhecidos a conviver com a utopia de uma sociedade ilhada em shoppings caros, academias da moda e praias mergulhadas em cocô, as quais chamam de mangue. O mangue passou a ser apelido de vala negra, ou seja, fossa; as garças e jacarés possuem coliformes fecais em seus intestinos e as gigogas passaram a ser praga, tentando comer nossos restos alimentares.

A Tijuca, anteriormente famoso bairro por seu parque florestal, que dá oxigênio ao governador, ao dono do maior jornal do país e a toda a população, hoje detém o percentual mais marcante de roubos de carro e assaltos.

Zona norte nunca foi muito idolatrada mesmo... Só quando chega o Carnaval ou acontece algum ensaio na escola de samba. Aí, os traficantes deixam passar. Se bem que neste quesito, na apuração, a zona norte passa para o segundo grupo, quando disputa com a zona sul, centro-oeste e oeste.

Visitantes de todo mundo alugam vans para visitarem a tragédia. Acham lindo verem guetos, ruelas e gente linda vestidas com trajes pobres, como se fossem personagens de um filme "sessão da tarde" da Índia. E aquele cheiro de merda no ar... Não imaginam que ali as pessoas vivem sob o pavor da bala perdida nas brigas entre polícia e bandido, sob a coação de um novo poder que se apoderou de gente humilde, que serve de trincheira para o governo paralelo.

Zona norte e oeste, que foram há séculos sedes de engenhos, da agricultura e história, hoje são locais que jamais alguém da zona sul vai pisar. Barra e Recreio dos Bandeirantes, que são da zona oeste, lutam para serem situados no mapa numa quinta zona: a zona total, onde mora a maior favela do país junto com os emergentes e os bolas da vez de nossa sociedade. Quem manda dividirem em quadrantes o indivisível?...

Cintos de segurança são obrigatórios há muitos e muitos anos, mas só fizeram sucesso quando passaram a gerar grana com multas. Está certo que cintos salvam vidas, entretanto só foram bem aceitos quando mexeram com o bolso do povo pagante (porque marginal não paga nada). O mesmo acontece agora com a lei seca no trânsito, uma bela sacada de marketing.

Eu ouvia falar em bafômetro, mas eu não via esses aparelhos nas rodovias com frequência. Só eram usados naqueles caras que não precisariam do mesmo: era só dar um cheirada na boca depois que tivessem arrasado meia dúzia na calçada. Agora até mau hálito é detectado pelos rodoviários. Tá certo, tá certo... mas por que não chegaram antes de milhares de pessoas terem ficado aleijadas?!

Pelo menos os taxistas estão faturando horrores, e até existe quem entre na justiça para poder digirir embriagado. Olhem que maná... Quanto cabide de emprego isso gera: advogados, vans, táxis... Quem bateu o martelo induziu sutilmente o povo a ser prudente. Pena que seja tarde para muitos.

Lembro de um idiota aí, talvez aliado a indústrias de gaze, que exigia que tivéssemos todos em nossos carros um kit desespero na mala ou gabinete: gaze, esparadrapo e sei lá mais o quê... Na época eu me perguntava: De que adianta isso se quebrarmos a cara numa frente de um Xzara Picasso alcoolizado?

Drummond pergunta: "Mas pra que tanta perna, meu Deus?". Como chapeuzinho vermelho eu pergunto: "Pra que serve esta boca tão grande, Pai?...". O Rio responde: "Pra cagar e andar, filhinha"...

Leila Marinho Lage
Rio, julho de 2008
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