Clube da Dona Menô
Dona Menô

A SEITA

Mando este texto com correções ortográficas em setembro de 2011. O mesmo foi escrito e publicado na Internet em julho de 2008.

Virtual, semanticamente falando, é algo que não é real, mas existe... É algo além do material, pois é conceitual. Acho que os adolescentes de hoje entendem melhor dessas coisas do que eu, que vi o descobrimento da Lua e que não podia imaginar, quando me formei em medicina, em 1981, que aqueles computadores fariam parte até do aprendizado numa escola pública primária, como também que podia saber que a gente alcançaria o mundo, em questão de segundos, só me ligando a um pc ou a um celular - coisa que também não existia...

A linguagem cibernética surgiu com os computadores populares, mas lembro de meu professor de anatomia, em 1976/77, dando aula sobre a boca:

“A boca é um espaço virtual quando está fechada, mas ela não é colabada. Portanto, tudo depende do que entendem, caros alunos, sobre o que é fechado e o que não é!”.

Daí veio meu texto abaixo, quase trinta anos depois:

A SEITA



Mel já tinha passado dos 40. A idade não importava mais. Ela não tinha grandes perspectivas na vida depois que viu que as menininhas de 20 davam em cima dos quarentões e cinquentões que ela tentava conseguir nas páginas de bate-papo.

Havia toda uma tática: primeiro ela se insinuava, inocente, como uma dama, quase ingênua. Afinal, ela tinha que conquistar pelas palavras, uma vez que a concorrência estava enorme. Seus dotes físicos não lhe ajudavam, mesmo tendo saúde de ferro, se bem que a mental estava falhando... Mas isso ninguém ainda notava, uma vez que, no mundo virtual, quanto mais doido mais normal... 

Ela tinha uma lista imensa de admiradores. Todos eles eram "empresários e bem situados na vida". Falavam várias línguas, seus dotes físicos eram invejáveis e passavam férias em lugares paradisíacos, os quais ela almejava conhecer junto a um deles. Até passaporte ela atualizava sistematicamente, no afã de ser convidada repentinamente para um passeio “de grátis” ou viver no exterior.

Só que a coisa estava ficando esquisita. Quanto mais ela se sentia quase no altar, mais as situações davam pra trás e o seu príncipe encantado saía pela culatra. Ela chegou a conhecer alguns pessoalmente, mas descobriu que mau hálito não se percebe pelo computador e que - a despeito de conta bancária - uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Acabava tudo num racha do sanduíche do Bob’s com eles - quando não era ela a pagar o rango inteiro!

Mel chegou a fazer uma estatística pessoal sobre o perfil de seus amantes virtuais. Ela tinha táticas infalíveis de abordagem e sedução, dignas de uma ninfeta dos anos 50. Só faltava mesmo conseguir a cinturinha delas... Este não era o maior problema, pois, se conseguisse alguém fragilizado emocionalmente e novato nessa de páginas de relacionamento, ela estava feita!


O tempo foi passando e ela não conseguia mais largar o computador. Chegou a aprender tudo sobre informática, mesmo sem fazer curso, só de ficar viajando horas a fio nos inseguros caminhos da Internet. Até de hardware manjava. Sabia como ninguém a reconhecer o que o barulho de sua máquina dizia e qual era o defeito. Empurrava móveis e se enfiava em fios para dar um jeitinho básico. Tantos coolers guardados, tantas fontes carinhosamente à espera de serem trocadas, tantos teclados virgenzinhos esperando por seus dedinhos, se durante a madrugada um defeito interrompesse um romance no MSN...

Aí, começou a ficar sinistro: na empresa onde trabalhava ela salvou dois e-mails no MSN, três no Facebook e quatro no Orkut. Até pagou caro para receber cantadas e piscadas numa página de paqueras. Quando algum colega de trabalho se aproximava, ela minimizava a tela e continuava o enfadante serviço da repartição... m

O patrão já estava achando anormal sua dedicação ao trabalho, pois era a primeira a chegar e última a sair. Quando ele perguntava se ela queria sair mais cedo, Mel dizia que ainda não tinha terminado a planilha do final do mês - mesmo sendo dia 5...

Assim que chegava à sua casa, nem tomava banho ou jantava, mas ia direto para o seu computador vagabundo, com conexão discada. Ela deixou de ir a festas, de conhecer gente nova, de viajar, porém tudo melhorou quando ela conseguiu comprar por 29 paus um pacote de inteligente e um laptop. Aí, sim, ficou independente e livre. Não havia reunião ou excursão que a impedisse de namorar!

A linda Mel começou a beber vinho, pois os europeus o bebiam. Aqui, no Brasil, ela bebia “Sangue de Boi” mesmo... Ela não dormia mais, só comia nuggets e engordou horrores, pois preferiu substituir sua vida social pelo sonho que a satisfazia quando interagia com machos (ou pouco machos) que a bajulavam.

As conversas com as amigas giravam sempre em torno dessa vida “virtual” que ela travava com seus amores. Ela sonhava que um dia alguém ia se deslumbrar com a sua graça, seus dotes, só de ela falar sobre eles através de teclas. Ela tinha tanta intimidade com seus namorados que até a hora do dentista dos caras ela sabia qual era. Ficou expert em dar conselhos, em mandar cartinhas com gifs, jurando eterno amor, em fazer grupinhos de mensagens, de auto-ajuda, tudo que mandassem ver.

O problema foi quando ela começou a partir pra agressão com os amigos que conquistou. Pintavam inveja, intrigas, deboches e recados desaforados. Ela passava a tarde toda com taquicardia porque fulaninha disse que fulaninho já tinha dono. À noite passava as suas horas dizendo pra amiga que fulaninho tinha mais compatibilidade com o seu perfil...

Ela nem tomava banho. Pra quê?... Ficou viciada (se não, possuída por alguma entidade “virtual”) e sentiu que precisava de ajuda profissional. Sua vida pessoal não existia, sua vida virtual ON LINE estava OFF, mas ouviu falar sobre um guru que exorcizava essas forças negativas e malignas. Decidiu chamá-lo à sua casa.

Como uma dependente, antes da visita com o tal entendido, Mel escreveu e-mails ofensivos a todos os seus amigos, fez sexo virtual com dois desconhecidos superdotados e enviou a todos os seus contatos um monte de correntes, além de alertas quanto a vírus superpotentes e encheu seus colegas com poesias jamais escritas por Carlos Drummond de Andrade. Pelo menos assim ela conseguiria ficar “zen” por algumas horas, sem sentir abstinência...

CHEGA O GURU

Ele tinha cara de Nerd, mas parecia ser um cara legal. Olhou à sua volta, na salinha, que precisava de uma faxina há meses, e encontrou o computador ligado, como um totem. Ele se ajoelhou em frente a ele, elevou os braços e gritou: “São Bilgeitz (da seita Os Seguidores Bilgeitzianos), faça um download e se junte a nós!”.  

A torre e o monitor chegaram a estremecer. Mais estremecida ainda ficou Mel, que começou a ter arrepios, tais como os que sentia quando alguém a chamava de gostosa no Chat. O guru percebeu que ela iniciava o processo de incorporação do demo informático e se afastou, arregalando os olhos. Mel começou a espumar e a rodar a cabeça, a princípio num sistema binário, e depois a 360 graus, que faria no começo dos tempos a qualquer “Linda Blair”...

O guru, com uma voz quase metálica, perguntou a ela: “Quem é você, anjo das trevas?”. Mel não ouvia mais nada, possuída pela FORÇA. Ela pulou repentinamente da sua cadeira e ficou de cócoras, teclando sem parar, obsessivamente, mandando mensagens absurdas para todo mundo que tinha cadastrado, inclusive seu chefe do trabalho. Não se importava, uma vez que posteriormente ela poderia explicar que tomaram conta de seu e-mail e escreveram por ela...

Ele agarrou, impedindo que continuasse a escrever, emitindo grunhidos: “DILIT! NAMBERLOC! BREIQUE, BREIQUESC! KEPSLOC!”, "CHIFT, CHIFT!"

Ela se contorcia e tentava soltar suas mãos, até que conseguiu com o dedão do pé dar ENTER. Foram para o espaço todas as ignonímias que ninguém esperou ler em seus correios eletrônicos...

"Guru" e Mel ficaram horas em luta corporal, até que pintou um lance. Mel sentiu que ali existia uma entidade que a protegia. O cheiro de esfiha do Habib´s e o seu suor a fazia lembrar que carne é bom mesmo. “Guru”, por sua vez, nunca tinha estado tão perto de uma cinturinha tão roliça, uma vez que praticava celibato em prol de uma vida totalmente dedicada a antivírus e placas-mães... Eles se apaixonaram à primeira teclada. Foi um reboot em suas vidas.

Hoje eles estão casados, de papel passado, como qualquer ser normal. “Guru” ensinou a Mel que se ela quisesse usar o computador com inteligência e realmente de uma forma radical, teria que fazê-lo em grande estilo. Por esta razão ele continua a fazer suas pajelanças, mas ela entrou num curso internacional de hackers, além de dar aulinhas de Word para criancinhas, que, quem sabe, serão futuros discípulos de sua seita próspera e salvadora... 

Texto e foto
Leila Marinho Lage 
Atualizado em setembro de 2011 
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