Clube da Dona Menô
Dona Menô

As Marias da Penha
14 passos da Via Sacra marcam a história de todas as Marias

Texto e direção teatral:
Carlos Jerônimo Vieira
Limeira, São Paulo

Primeira Estação
Condenado à morte

Estou condenada à morte
Mesmo antes de ter começado.
Quando nasci, minha mãe
Fez promessas de santo
Fez promessa de vida boa
Fez de tudo para que eu
Fosse a mulher perfeita,
Para o homem perfeito.
Estou marcada pra morrer
Sem completar o ciclo
Das promessas. Estou jurada
Pelo amor perfeito. Há dias
Estou na fila à espera
De proteção. Ele anda armado...

Segunda Estação
Tomo a cruz nos ombros

Eu carrego uma cruz.
Nela estão estampadas
Todas as angústias desse mundo.
Sigo este caminho
E o peso da desordem
Corrói os meus ombros.
Estou cheia. Os pecados
Que me imputam
Estão enraizados na origem
De um relacionamento podre
Sem amor, sem vida, sem nada.

Terceira Estação
Primeira queda

Ontem caí pela primeira vez.
A terra moveu-se e a poeira
Saiu da minha boca num turbilhão
Como se fosse um grito, um berro,
Exigindo meus direito de mulher.
Logo um frio passivo alojou-se
Em meu pequeno estômago,
Tive vontade de vomitar, mas não deu.
Tive vontade de mijar, mas não veio.
Restou-me apenas uma chicotada
Na cara.  Um escarro caudaloso
Cobriu meu peito. Depois disso,
Levantei-me sem a mesma
Dignidade. Esta já não existe mais.

Quarta Estação
Encontro com a mãe

Não disse nada. Nunca disse nada.
Aprendi desde cedo a me calar.
Com minha mãe foi assim.
Comigo tem sido assim.
Meu pai bebia até a alma,
Meu marido bebe a alma.
E eu tenho bebido seu cheiro
Todos os dias, todas as noites.
Eu tenho sentido o peso
De seu corpo sobre o meu,
Sem tesão, sem gosto, sem vida.
Sou um poço onde ele joga
Seu suor e sua cachaça.

Quinta Estação
Cirineu

Não sei o que é ser mulher.
Não sei o que é sorrir, passear,
Curtir a vida, conversar com vizinhos.
Não cometi nenhum crime
E estou condenada à prisão
De minha própria casa sem janelas,
Sem portas. Estou definitivamente domesticada.
Ontem alguém bateu à porta.
Não tive coragem de atender.
A cruz que carrego não me deixa.
Gritar por socorro. Aceitar que alguém
A carregue é minha sentença de morte.
Como sempre, fingi que não havia ninguém.
O silêncio, meu silêncio, é minha chance
De continuar  viva.

Sexta Estação
Verônica

Ele anda armado.  A mulher
Perfeita continua em pé, mas está morta.
Não levei um tiro, mas estou morta.
O homem perfeito conseguiu essa proeza:
Nunca me bateu, mas era como se tivesse batido.
Sua voz, sua prepotência, sua indiferença
Sua arrogância, seus ciúmes doentios
E suas intimidações mataram meu orgulho.
Mataram minha sede de viver. Estou só.
Teria  sido melhor esquecer os conselhos
Da mulher perfeita, do homem perfeito
Que minha mãe apregoava em bom som.
Melhor teria sido continuar meus estudos
Fazer uma faculdade, sair com os amigos
Desfilar minha liberdade pelas avenidas.
Mas não tive coragem. Tive muito medo.

Sétima estação
Segunda queda

Ontem caí de novo. É a segunda vez.
Eu estava dormindo em minha casa
Quando, de repente, um estampido ecoou
E uma bala cruzou o espaço, indo ao meu corpo.
Rompendo meus pequenos e frágeis ossos,
Transformando minha coluna em pequenos pedaços.
Senti minhas costas ardendo como fogo
E tive sede. Meus lábios tremiam.
Todo meu corpo jazia  sobre a cama inerte.
Pensei nos anjos do céu e na minha família.
Do céu veio apenas um raio de luz,
Mas não tive coragem para segui-la.
Estou aqui... viva e paraplégica.

Oitava Estação
Mulheres piedosas.

Continuo carregando essa cruz.
Por Deus do Céu, é preciso mudança!
Tudo parece parado à minha volta.
O tempo, as pessoas, a vida agoniza.
Eu agonizo. O que será de mim?
Essa é a segunda vez que peço:
"Preciso que você me liberte
Dê-me logo o divórcio". 
Mas, não! Ainda sou sua propriedade.
Não posso sair de casa, que ele me segue.
Não posso conversar com amigos, - ele briga.
Não posso ser feliz - ele não deixa.
Eu choro. Essas mulheres choram.
Quando haverá providência? Quando?...

Nona estação
Terceira queda

Caí uma primeira, segunda. Essa é a terceira vez.
Não bastava me ver numa cadeira de rodas.
Era preciso me eliminar de vez.
Estou pronta para meu banho diário
E sinto que o perigo ronda minha alma.
Estou totalmente apreensiva. Algo me diz
Que alguma coisa está para acontecer.
Minha vida está por um fio. Um fio de cobre
Em contato com a água que escorre
Do meu pobre e maculado corpo e o ralo.
Mais uma vez ele falhou. O choque foi pouco.
Desta vez o mundo abriu a boca e gritou.
Todos ouviram. A lei, que me julga,
Não julga o criminoso. Ainda tenho medo.

Décima estação
Despido das vestes

Era um domingo. Dia de festa em família.
Todos vinham para minha casa. No Natal
Era sempre assim. Era gostoso ver todos
Reunidos em volta da mesa comungando
A vida de nosso Senhor Jesus Cristo.
Comprei um vestido a crediário, lindo,
Com quatro dedos acima do joelho.
Eu estava radiante com a nova compra.
Imbecilidade e inocência minha. Ele viu.
Fez-me tirá-lo a pontapés. Levei tantos
Murros e chutes que perdi a conta.
Tirou-me a roupa a unhas, deixando-me nua.
No hospital, depois de dois dias, acordei.
Não sabia o que havia acontecido.  
A primeira pessoa que me viu foi ele. Sorriu,
E exclamou: "Ainda viva? Aprendeu a lição?".

Décima Primeira Estação
Estou pregada à cruz

Os pregos atravessam meu débil corpo.
Não realizo nenhum movimento.
Já não carrego a cruz. Estou presa a ela.
Minha dor não consigo compreender.
De onde vem tanto sofrimento? Não sei.
O que sei é o que os pregos dizem:
Não fuja. Não reaja. Não agrida.
Tenho sede, e o que sinto nos lábios
É o gosto da tua cachaça e do teu suor.
O que sinto neste momento é raiva,
É ódio. E por mais que eu queira,
Não sinto nenhuma paixão.
Meu coração está fraco. Já não aguento mais.
Eli, Eli, por que me abandonaste?!

Décima Segunda Estação
Morro na cruz

Estas horas de agonia são longas,
Intermináveis, parecem sem fim.
Neste quarto de hospital encaro
Teu sorriso sarcástico, impropério.
Tua alegria infame e maledicente,
Tuas ofensas já não me ferem mais.
A vida para, o coração não bate mais.
O mundo dos pecados carrego comigo.
Três horas de agonia. Trinta e três anos
De vida perdidos no tempo que se esvai.
Parto, consciente do dever cumprido.
Meus filhos estão salvos. Deixo-lhes
Como herança meu coração fatigado.
Está tudo consumado.

Décima Terceira Estação
Estou nos braços da Mãe

Os pregos já não são mais necessários.
Desço desta cruz deixando nela
Todos os sofrimentos deste mundo.
Em prantos alguém me recebe nos braços.
Sou acolhida depois de tanta angústia,
De tanta dor que atravessou a alma.
Adormeço em seus braços, Maria,
Mãe de todas as mães padecidas:
Maria da Penha, Maria das dores,
Maria que é refúgio para tantas mulheres
Cansadas e martirizadas por seus homens.

Décima Quarta Estação
O Santo sepulcro

No santo sepulcro ficaram todas as dores.
Ganho o prazer e a consciência de uma nova vida:
A Ressurreição.
Eis que surge nos céu uma luz radiante e bela.
Nela, a alegria de uma nova lei: Maria da Penha.
A ressurreição.

Em 7 DE AGOSTO DE 2006 é sancionada a Lei nº 11.340, que “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. 

A ressurreição.

Neste exato momento cessam nossos gritos,
Nosso pequeno barulho de alerta se cala,
Mesmo que momentaneamente, até que
Outras mulheres, como eu, como você,
Comecem a gritar e exigir seus direitos.
Ressurreição.

Vida, dignidade, orgulho, amor próprio.
Glória à nova vida:
Ressureição!

Baseado na Lei Maria da Penha

Para assistir este texto em Power Point  Slides consulte a área de Vídeos e Slides, em Devaneando, no site http:///wclubedadonameno.com.