Clube da Dona Menô
Dona Menô

Consultório ginecológico 
Enxergue

O meu consultório, como o de qualquer médico, é uma escola. A gente escreve e comenta sobre os fatos, na intenção de passar a realidade da nossa vida.

Em hipótese nenhuma darei nomes reais às clientes, mas todas existem ou já foram minhas pacientes. Talvez algumas pessoas se identifiquem com as personagens, outras ficarão na dúvida, uma vez que as situações se repetem.

Tive a permissão de alguns para deixar aqui no meu site seus nomes, como no caso dos amigos. Sendo assim, deixo registrado, na maior parte dos textos, apenas a situação, sem nomes ou data específica.

Um dia rotineiro:

Primeiro foi a moça que brigou com o marido na minha frente. Era uma discussão meramente doméstica. Ele não ajudava nas tarefas de casa ou coisa assim. A coisa tomou um vulto que eu tive que interromper a briga para lembrar que eu estava ali. Nem olhavam pra mim.

Entrou, a seguir, uma senhora, que trata comigo há mais de dez anos. Agora estava bem doentinha, mas, como sempre, muito alegre... e surda. Totalmente surda.

Não me avisaram dessa surdez. Sua filha, que a acompanhava, gritava com ela para “traduzir” o que eu perguntava.

Na anamnese,  tive que perguntar se a senhora ainda tinha atividade sexual.
 
Resposta: "Ah, eu como de tudo!”.

Eu tenho uma diferença com surdos... Como lá o povo é eclético, eu até encontrei "alguma coerência" na sua resposta. Tive que rir e esperar o que vinha depois.

A filha, vendo meu espanto, me alertou de sua surdez e, aí, percebi que ela devia ter entendido alguma coisa sobre como se alimentava...
 
Tudo bem, a consulta foi no grito mesmo. A paciente se justificava: “Doutora, a gente não ouve porque Deus nos compensa. É melhor, depois de certa idade, deixar de ouvir algumas coisas, entendeu?”.
 
Isto, sim, tem coerência!!!

Isso me lembrou o dia em que atendi uma cega, que só enxergava sombras. Na época, eu tinha uma secretária muito habilidosa, mas, circunspecta, pouco falante, uma verdadeira inglesa.

Um dia, uma velhinha foi ao meu consultório, cega das duas vistas, acompanhada de sua filha. A pessoa que a acompanhava foi embora e a deixou sozinha naquele lugar estranho. Depois da consulta, minha secretária a levou até o táxi, e ela se foi para retornar tempos depois. Esqueci desta senhora. 

Geralmente eu vejo os exames das pacientes antes de elas entrarem. No dia de dar o resultado do preventivo para ela, decidi que teria que a examinar novamente.
 
A secretária me alertou: “É aquela senhora com “aquela deficiência”- apontando para rosto com o dedo. Pensei que se tratava de uma deficiente auditiva; na hora, pensei estar lidando com uma surda.
 
Cegos se irritam se a gente fala alto com eles. Imaginem os minutos a seguir:

A paciente entrou sozinha, sentou, conversou comigo um pouquinho, me olhando diretamente nos olhos (como eu esperava de uma paciente surda, mas, não, de uma cega...). Em certo momento, ela até desviou o olhar, quando eu me virei, acompanhando meus movimentos.

Olhei bem dentro de seus olhos e falei alto para ir à mesa de exames. Como tenho o hábito de ajudar a paciente somente se a mesma me pedir, apontei o local e esperei que ela se dirigisse para lá.

A secretária nada de chegar - estava ocupada com um problema na outra sala e não respondia ao interfone.

Intrigada com a atitude da paciente, que andava quase que em círculos, eu peguei seu rosto e falei alta e pausadamente: “Por favor, vá para aquela cama”, soletrando: “CA – MA, CAMA !!!“. 

Neste momento, ela percebeu que eu confundira as bolas e pensava que ela era surda. Por isso, começou a rir de mim.

Nada de secretária para me ajudar! Aquela paciente rindo de mim e me olhando como se eu tivesse feito a maior asneira do mundo. E estava mesmo...

Ela falou: “Ao invés de gritar, por que não me mostra onde a cama está?”.

Enlouqueci de vez. Eu gritava com uma cega, pensando que ela era surda. Ainda arrisquei: “A senhora, além de surda, também não enxerga?”.
 
Ela riu de novo e me informou que sempre ouviu muito bem. Seu problema era na visão, não no ouvido.
 
Ela só via clarões, e uma médica totalmente atordoada no meio deles...

Hoje em dia a minha querida paciente sempre me alerta, quando chega: “Oi. Sou aquela que não vê. Não grita comigo, tá?". Aliás, agora ela já foi operada e enxerga bem melhor.

Nunca mais vou esquecer de anotar bem grande na capa das fichas médicas a deficiência de cada um. De preferência, desenhar e colocar setinhas...

Leila Marinho Lage
http://www.clubedadonameno.com