Clube da Dona Menô
Dona Menô


6 - Gatos
Morte

Gatos.... Vocês odeiam?... Eu também, se os tivesse em um apartamento... Gato é pra viver livre!

Imaginem um gato cuspindo ácaro 24 horas dentro de um quarto ou uma sala! Isso é nojento, sujo, horroroso!!!!

Pois é... Eu vivi isso. Sei como... Hoje eu me nego a passar pelo que passei, mas a cabeça era outra e Papai do Céu sabe muito bem os caminhos que nos traça.

Se sou alérgica a animais deveria ficar longe deles, afogar, dar pra alguém, ignorar numa clínica veterinária e achar que iam fazer o melhor por eles, né? Troquem isso e pensem em crianças abandonadas... Pensam o mesmo delas...

Sei não... Se eu não me cuidar, ainda vou ter umas crianças pra cuidar... Só não tive até hoje, é porque "odeio" crianças!!! Odeio todas elas! Ainda mais quando colocam meleca na minha parede!!! E quando fazem merda, eu tenho que resolver... Prefiro animais.... Aliás, não prefiro nada!!! Sai fora, Satanás!!!

Eu quero saber porque as crianças gostam de mim se eu não dou a menor bola pra elas! E quero saber porque elas nunca me chamam de tia, e, sim, por Leila. Quero saber porque elas olham pra minha cara e riem, enquanto respeitam os mais velhos.

Protesto contra as crianças! Elas puxam papel higiênico; não me ouvem; me saneiam; acham que eu tenho idade delas. Nunca consegui lidar com crianças do jeito que os outros lidam... São uns bichinhos! E bicho é pior ainda!!!

Uma gata abandonada, de rua, uma vagaba grávida acabou na minha casa... E foi a minha parceira, minha alma gêmea...

Falam de equinoterapia (tratamento na convivência com cavalos). Falam em teorias com animais domésticos e gente que vive por causa de um animal, como se nada existisse mais neste mundo... Tudo teoria. Teoria?... 

Minha gata fugiu a todas estas modalidades, até porque eu nunca a quis e nem nunca a procurei. Pra muitos, ela seria um estorvo - e até foi... Entretanto, eu me vi muitas vezes chegando em casa e apenas a tendo do meu lado. Eu me vi chorando ao lado de uma gata... e perguntando pra ela: “Clarence, você acha que eu faria mal assim ou assado?", "Clarence, eu estou errada nisso ou naquilo?", " Clara (abreviação), eu seria muito irresponsável se eu dissesse isso ou aquela coisa?...”.

A gata me olhava e miava... Obviamente não entendia nada. Ela entendia, sim, é de coisas primárias, tipo: retirar um filhote dela para dar pra alguém, ter fome, ter dor, querer proteção...

Ela odiava quando eu aumentava a voz e isso era uma constante, pois se eu brigo, eu brigo MESMO! A gata ficava nervosa, andava de um lado para o outro e só parava quando eu me acalmava. Sempre quis racionalizar os sentimentos de minha gata, sempre dei explicação para o comportamento dela. Uma das explicações era a entonação da voz...

Muitos ódios, muita raiva foi compartilhada junto a esta gata. Ela sempre ao meu lado, mesmo podendo ir embora a qualquer momento pela janela. Mas, ela ficava ao meu lado. Ficava triste quando eu me sentia triste e me arranhava se eu chorava. Ela só comia quando eu melhorava da cabeça... E ela dormia o tempo todo enquanto eu estava com problemas. Entonação de voz?... Eu nem estava falando... Às vezes, nem estava presente!

Em uma época ela deu pra sumir e se esconder pela vizinhança. Era um tal de procurar gata que era um inferno! Ela nunca tinha feito isso antes. Eu acho que ela estava com tantos grilos quanto eu.

Uma vez eu tive até que colocar um carro com alto falante para avisar à vizinhança: “Procura-se uma gata branca sem orelhas e com feridas no nariz”.

Esta vagabunda apareceu uma semana depois, quando descobrimos que ela estava num galpão do vizinho, comendo todos os ratos do local e não podia subir de volta no muro, porque era muito alto...

Eu já tinha tirado as orelhas dela. O nariz já tinha sido queimado, mas o câncer progredia no rosto. Isso é muito comum nos albinos que pegam sol. Eu já tinha desistido de tratar, porque ela ficaria com um buraco na face. Ela já era velha e não teria muito mais tempo de vida.

Eu tinha que decidir (e decidi) por deixar que ela vivesse sem maiores sofrimentos e cuidados, mas sabia que o pior ia acontecer um dia.

Quando minha mãe morreu, eu logo mudei de vida e saí de minha casa, deixando meu passado, minhas coisas e gente que só me causava ódio. Tive que vir para um apartamento perto de meu trabalho, com uma gata e um passarinho, que eram os únicos seres viventes que dependiam diretamente de mim. Os outros seres viventes que dependiam de mim, ou em parte, tiveram que se virar... Até que se viraram muito bem.

Eu estive na nova casa pela primeira vez num sábado de noite. Um apartamento sem luz, o qual seria o meu lugar a partir daquele momento, o meu canto, mas totalmente só. Fiz uma mudança rápida e solitária, levando o básico para uma sobrevivência e cheia de dívidas, depois de ter ficado um ano sem trabalhar, sem um puto no bolso e com a minha honra lavada. Ou era isso, ou eu cometia um crime qualquer, movida pelo ódio.

Eu, a mobília e uma gata... Tudo amontoado na escuridão total num sábado de noite. Foi daí que surgiu a crônica “Baú de Retratos”, que existe em áudio, texto, em alguns lugares em pps e até em vídeo. Minha vida estava restrita a um apartamento, objetos que consegui reunir durante tragédias e nada no banco, além de uma gata que miava num lugar estranho e fechado.

De manhã eu resolvi a levar para passear, presa a uma coleira, que nem um cão... Não prestou! Ela saiu articuladamente da coleira e fugiu para baixo de um carro, desesperada por ver lugares e ouvir sons que não conhecia. Nunca mais ela saiu de casa, a não ser numa gaiola...

Foi muito difícil cuidar de um gato num apartamento e tendo que trabalhar o dia todo. Até tive que ter empregada todos os dias só por causa dela. Quando eu tinha que trabalhar de noite, era um inferno de preocupação. Banho, alimentação, higiene, tudo era muito trabalhoso e caro. Sendo eu alérgica a gatos, ficava mais trabalhoso ainda manter o máximo de purificação do ambiente... Até minha casa foi escolhida e adaptada por causa deste bicho.

E voltam a me perguntar: “Mas, por que não deu um fim nela?!”.

Eu digo:

No dia em que decidiram fazer eutanásia em minha mãe, e era a única saída, a única pessoa (pessoa?) que estava na minha casa para me apoiar era minha gata. Minha mãe foi sedada para morrer lentamente. Fui dormir em casa neste dia, pois lá eu tinha acabado minha missão.

Eu já tinha me separado havia um mês; eu tinha pessoas ou pessoa à minha volta cultivando ódios; eu tinha um destino para resolver em pouco tempo, pois minha vida ficou de cabeça pra baixo e tive que resolver isso sozinha, depois de ter sido tão presente na vida de todos.

Vim para uma casa estranha com uma gata estranha, num lugar estranho, pois era o que eu mais queria - sumir de tudo!!!

Passei dois anos sofrendo e amando a gatinha. Tive amores, namorados, paqueras e amigos verdadeiros à minha volta. E minha gatinha sempre ao meu lado, me pentelhando.

Como sou uma eremita, houve épocas de festividades, como Ano Novo, que eu preferi passar sozinha ao lado dela. Tenho certeza de que muita gente não sabe disso. Alguns vão adorar, outros vão entender e até me dar razão, mas eu só tive Clarence como minha companheira verdadeira, a única que me olhou nos olhos e disse: “Eu lhe entendo. Eu preciso de você”.

Tempos depois, quando eu a vi sangrar o chão todo, ao chegar em casa, passei a noite toda observando seu sofrimento. Vi que ela sentia dor ao comer e seu rostinho estava muito ruim. Qualquer coisa que ela comesse causava hemorragia no nariz e na boca. Fui trabalhar no dia seguinte já pensando friamente no que eu tinha que fazer.

Era um final de tarde e ela estava feliz, sem sangrar e pedindo carinho. Eu a alimentei; a beijei, como se beija uma criança; chorei; a abracei, como se abraça um filho, arrumando as coisas dela para a minha amiga veterinária; a sedei para morrer. 

Antes disso, ela me olhou, sem entender nada e me acariciou. Até brincou comigo, como sempre fazia. Como foi com minha mãe, que não sabia que ia ser seu último momento de consciência.

No dia seguinte eu fui trabalhar, da mesma forma que fiz quando minha mamãe morreu. Não houve a menor diferença entre uma morte e outra, mesmo que alguém ache um absurdo isso.

Leila Marinho Lage
Rio de Janeiro, 24 de Janeiro de 2008
http://www.clubedadonameno.com