Clube da Dona Menô
Dona Menô

Mal súbito

Dez anos atrás, talvez menos. Eu e meu amigo, um cirurgião de renome, íamos angelicalmente para mais uma emergência na madrugada. Não pensávamos no que ia acontecer, só no caminho.

Aqui no Rio um médico tem que vencer várias batalhas até conseguir chegar a um hospital de madrugada (na verdade, a qualquer hora do dia ou da noite...).

Na semana retrasada mesmo, um representante de laboratório levou uma bala na cabeça enquanto dirigia ao lado de seu filho de 4 anos. O bebê presenciou tudo e os dois foram acudidos pelos transeuntes. 

Um desgraçado nasceu, cresceu, conviveu com a miséria de sua vida e um dia encontrou com outro cidadão - este, um pacífico trabalhador, que teve uma vida menos trágica e feia. Os dois se encontraram em um segundo. O miserável atirou no rapaz para roubar o seu carro, talvez levado pelas drogas, pois não havia senso interromper o trajeto de um carro em movimento à toa.

O homem, transformado em animal, atirou e, não conseguindo o carro, foi embora. Deixou pra trás um homem entre a vida e a morte, até este morrer uma semana depois com buracos no cérebro.

Quando a gente enfrenta noites, madrugadas, blitz de policiais (inclusive) corruptos (e esta é uma constante), blitz falsas, com marginais uniformizados de policiais; quando a gente se dá conta de que ganha um nada para acudirmos as pessoas nos hospitais, ganhando uma miséria dois meses depois dos planos de saúde; quando a gente vê que até a recepcionista de um hospital vagaba nos trata que nem um monte de bosta; quando a gente vê que não conseguimos pagar HONESTAMENTE nossas contas e ainda temos que aturar este covil de ladrões, de políticos, puxa sacos e empresários do medo, aí é que vemos o quanto um médico carioca é honrado e um herói!

Aquele que não se prostitui, aquele que não tem apadrinhamento e vive pelo seu próprio esforço e valor, é considerado um derrotado, um perdedor, um nada na vida, um médico desqualificado. Aquele que diz que não consegue pagar suas contas é tido como um fracassado que deve ter algo errado na sua vida para não ter sucesso social e financeiro.

A gente ganha um registro do CRM (Conselho Regional de Medicina, regido por interesses que nem sempre estão de acordo com nossos princípios) e nos "formamos". Daí pra frente vai depender de nós. Somos autodidatas (da ciência e da tática de sobrevivência na Cidade e nos hospitais); enfrentamos as adversidades da política, desta safadeza de convênios e cooperativas, desta farsa que inventaram para a sociedade se achar protegida...

Não sei desta geração de médicos, mas na minha época a gente vivia MEDICINA, a gente dava a vida pela MEDICINA. E demos muito de nossas vidas pela MEDICINA.

PAREMOS AQUI UM INSTANTE:

Há dois meses uma gestante teve perda total de líquido amniótico em casa. Ela estava com gravidez gemelar e sem dor alguma. Pedi para que o (único) médico do hospital, que cuidava de pacientes graves num CTI, verificasse se ela tinha contrações. Era preciso intervir imediatamente, até mesmo antes de minha chegada. A resposta do médico foi: "Não saberei o que é uma contração uterina".

Pedi para que a enfermeira (formada por uma faculdade), responsável pela maternidade (a chefe - antes tivesse pedido a uma auxiliar de enfermagem antigona) visse se a paciente estava com alguma contração. Resposta dela: "Não me delegue esta responsabilidade! Não saberei se ela está ou não com contração!" - hospital de elite...

Eu digo: Em todos os hospitais do Rio de Janeiro (PERHAPS IN THE WORLD) existem crimes praticados a todo minuto e agora mesmo!!! Há aqui ou em qualquer lugar do Brasil (e em muitos países, inclusive de primeiro mundo) hospitais e correlacionados que cometem crimes velados o tempo todo. Muitas mortes poderiam ser evitadas, muitas pessoas poderiam ser salvas de complicações graves.

É o crime contra a ética, contra a vida humana, contra a dignidade. É o “deixa que eu deixo”. É a lei de Gerson.

Eu já vi muita coisa... Por exemplo (um pequeno exemplo, para não ser processada... Afinal, por aí tá cheio de gente querendo tirar 40 salários mínimos, que é o que a justiça gratuita deixa fazer para uma acusação sem ônus, e há muita gente que sobrevive disso!):

Vi gente importante (dentro de um HOSPITAL DE ELITE, além de outros exemplos, piores, até) pedir pelo amor de Deus para fazer xixi num recipiente. E vi uma auxiliar de enfermagem, muito ignorante, dizer: "Mija aí na fralda mesmo... ". Não adiantou nem a grana que o sujeito tinha para ele não ser submetido a uma humilhação totalmente desnecessária naquela situação.

Já vi muita faxineira de hospital limpar secreções do chão de um quarto de doente e depois pegar na maçaneta da porta com a mesma luva que lavou o chão (hospital de elite, com artistas e políticos internados na ocasião) e passar a mesma água porca de um quarto para outro.

Isto aconteceu no mesmo dia em que me disseram que eu não poderia entrar no CTI sem lavar as mãos (eu estava morando neste CTI há dias, cuidando de minha mãe).

Incorporei a pomba gira, é lógico... Chamei a "turminha" e fiz o barraco. Tive que acionar esta turminha quando disseram que minha mãe, junto com dezenas de outros pacientes em coma, tinham que cheirar cola de sapateiro de uma obra... Se não fossem minha raiva e minha força em lutar pela vida de uma pessoa, jamais conseguiria tal façanha. Foram muitos anjos dizendo AMÉM naquele dia.

Sim, legal isso, né? Minha mãe (por isso, uma lição de vida), com insuficiência respiratória, sendo amparada por aparelhos de fisioterapia respiratória, em pelo enfarto do miocárdio, consciente e sendo sedada com remédios que causavam náuseas, tendo que pedir para tirarem aquele cheiro de cola de sapateiro do ar, dizia: "Minha filha, cuidado com estes caras.  Eles podem te detonar. Você é uma médica e pode se dar mal enfrentando essa corja".

Tive ninguém que me amparasse nesta época. Só gente ao meu lado que via mais o seu lado do que o lado da vida de uma pessoa. Só tive a minha ignorância, minha estupidez, minha “não classe” e minha convicção pelo certo, por tudo que aprendi na Medicina para me defenderem.

Estavam em obras no CTI (que não foi interditado e escolheram o domingo para a obra. Isto, num hospital de elite...). Não se poderia parar com o que dava lucro. Parar de atender significaria gastos, significaria pouco lucro - apenas isso... Milhares de dólares rolavam e rolam nos bolsos dessa gente. Não era uma obrinha cocô que ia fazer com que estes babacas ficassem menos ricos.

Quero ver um filho de vocês vomitando por causa de Dolantina e sentindo dor no peito, com falta de ar e cheirando cola de sapateiro!

Os médicos naquela tarde diziam: "Chegou a hora da “cola de sapateiro”. Vamos sair daqui". E deixaram todos os doentes (a maioria em coma - menos minha mãe e o "importante" da fralda). Deixaram os doentes sem qualquer auxiliar para cuidar deles. Todos saíram do tal CTI. Isto aconteceu em 2000 e eu presenciei cada segundo disso. Um CTI sem médicos ou enfermeiros, inclusive com doentes monitorizados e entubados, em coma (num hospital de elite...).

Sei lá por quanto tempo isso ia durar. Fui atrás do responsável e acabei no centro de ventilação central do hospital, onde o funcionário me alertou que no domingo menos pessoas iriam "sofrer" (existe feriado pra doença?). Falei que uma daquelas pessoas era minha mãe e o cara disse: "Num sei dizer, dona. É a vida.... (num hospital de elite...).

Detalhe sórdido que eu esqueci de dizer: O Centro de refrigeração deste hospital de elite escolheu o domingo para manutenção! Pararam com a refrigeração! E o cheiro da cola de sapateiro ficou insuportável, invadindo todo o CTI, que, na verdade, era a unidade coronariana do hospital... Cola de sapateiro, que é volátil, sendo inalada a 40 graus ambiente por pessoas em coma e duas conscientes, graves e conscientes - minha mãe e o ricaço da fralda.

Fui atrás da ouvidora do hospital, pois o diretor e ninguém estavam disponíveis. Também, pudera, com um dezembro sensacional!... Só consegui algo porque um amigo "importante" conhecia alguém "importante", que parou com a obra de imediato.

Graças a Deus eu tive quem me ajudasse, pois a próxima etapa seria chamar a polícia (e não sei o quanto resolveriam) ou meter porrada nos tais "médicos" - a maioria jovens, com estetoscópio no pescoço, jalecão e o carro do ano no estacionamento.

Este amigo "importante" é meu "irmão", alguém que Deus colocou no mundo para me fazer feliz e por quem eu daria a minha vida. Nunca poderei dar em troco nesta vida o que esta pessoa já fez por mim (e sem o menor interesse, sem qualquer intenção, apenas pelo simples ato de humanidade e amizade, tanto dele quanto de sua esposa).

Já vi muita enfermeira formada ter nojo de doente e deixar o mesmo todo cagado - por não ter noção de higiene e nenhuma cultura adquirida sobre controle de infecção. Já vi muita coisa que daria livros e mais livros!!!

Meus Deus! Eu sobrevivi a isto enquanto tratava de doentes! Se fosse na guerra seria mais digno!

Não adiantam processos. Alguns conseguem ser ressarcidos de dinheiro, mas não de sobrevivência ou melhor qualidade de vida. Os que conseguem algo nesta justiça caduca não são nem um terço dos que morrem sem nem a família saber porque morreram - por imprudência, imperícia, negligência ou por pura sacanagem.

Noutra internação fui chamada na direção de um CTI (de mais elite ainda) porque achavam que eu incomodava... Vi nesta época gente morrer sem a menor necessidade e vi muitos médicos fazerem absurdos que jamais um professor de faculdade ou até um bispo acreditaria... Vi e ameacei:

“Se me tirarem deste CTI eu vou botar a boca no trombone e eu só saio daqui com minha mãe porque não confio em vocês! Aprendi muito mais sobre as doenças que ela tem do que vocês, uns merdas que não sabem nada! E o pior é que eu dependo de vocês!. Me ponham pra fora deste hospital que eu abro o verbo!”.

Semanas depois (induzida pela antipatia e incompetência daquela gente) tive que transferir minha mãe em situação crítica do hospital de elite para um hospital pobre, mas com um atendimento humano melhor. Não podem imaginar meu sofrimento ao ouvir de minha mãe que eu a estava transferindo para o "inferno"... Era um hospital feio e um lugar horroroso para qualquer doente consciente.
 
No intervalo entre o hospital de elite (aí já foram dois hospitais de elite...) e o pobretão, conheci um Deus. 

Este Deus acudiu a gente pela primeira vez de madrugada no primeiro hospital de elite, enfrentando os médicos e se valendo do que a boa medicina ensinou. Era jovem, mas tinha e tem cultura e caráter que poucos médicos experientes possuem. A este Deus eu devo os poucos anos de felicidade que minha mãe teve a partir de então, entre idas e vindas em belos hospitais de elite....

Acontece o mesmo com a maquiagem feminina. Os defeitos, por piores que sejam, a gente engana... Não sabem o que passei, mas era condição sine qua non fazer minha mãe sair andando, ou quase isso, do lugar o qual ela julgava ser o inferno (mas era abençoado por maravilhosas pessoas). E consegui daquela vez. 

O cara da fralda (no primeiro hospital de elite) deve ter saído de lá meio sem graça, mas, com certeza absoluta, escondeu o que passou de todo mundo.

Por causa do amor e dedicação à Medicina acabei encontrando pessoas abençoadas por Deus. Infelizmente muito tarde para minha mãe.

Estes hipócritas que defendem o sistema de saúde brasileiro possuem avião para serem transportados para outros países... Acontece que em outros países, inclusive nos EUA, onde os emergentes acham que a coisa é melhor, também está uma outra calamidade. Neste ano mesmo eu soube de coisas que nem um acadêmico de medicina do segundo ano de faculdade, fazendo plantão no fim do mundo, faria com um paciente. 

Nós, médicos brasileiros, sabemos muito mais do que muito bacaninha estrangeiro por aí, podem crer. É só sabermos separar o joio do trigo.

Aliás, os médicos que trabalham pra cacete, que nem eu trabalhei na minha época, sabem muito mais que estes almofadinhas que cagam cheiroso e matam todos os dias. E não pensem que na Europa é diferente, não! A coisa está generalizada e eu posso dizer de carteirinha.

Muitos médicos e hospitais são bons, mas estes se misturam a profissionais pessimamente preparados ou que não possuem boa índole. Pessoas que deveriam exercer sua inteligência com outras coisas que não fosse cuidar da vida humana (nem mesmo exercer veterinária).

Se alguém hoje sofrer um acidente grave, sem condições de remoção, pode acabar num hospital público...

A coisa pode ser pior, mas pode ser até melhor, sabiam? Às vezes é melhor do que acabar num “hospital de elite”... Aqueles caras de lá, que trabalham que nem uns escravos; são heróis imbatíveis ou são uns imbecis. Vai depender da SORTE.

Nos hospitais públicos não existe, na maioria das vezes, nada (absolutamente nada) a se fazer por uma vida que poderia ser salva. A única coisa que há lá é a boa vontade dos profissionais de saúde.

Estes médicos que pensam que estão fazendo algo de bom pra população, na verdade, são apenas bonequinhos de uma máquina que está muito acima deles e que move grana, move interesses, move muita safadeza. A máfia da MERDICINA.

Compactuar com a sacanagem... Qualquer profissional que trabalha num estabelecimento de saúde, sabendo das coisas erradas que existem lá, está compactuando com o crime. Isto é conivência. Os médicos não podem ser cúmplices disso, pois somos médicos, não, criminosos.
 
Estamos na guerra! Eu vejo o Brasil como um hospital de front! Podemos ser socorridos por DEUSES ou atendidos por completos idiotas que querem fazer currículo naquele nosocômio e tirar uma graninha no fim do mês (merreca de graninha); que vão nos tratar como porcos - justamente como não gostariam de ser tratados; muito menos como gostariam que um parente deles fosse tratado.

O mesmo cara que baba o ovo de um paciente cheio da grana no consultório pode ser o mesmo que te olha como se você fosse um saco de titica. Já ouvi "colegas" dizerem absurdos para pacientes públicos e que jamais falariam para um cliente particular ou para um cliente "a 42 reais a consulta...”.

Quem está errado? Só o Governo?? Pra sobreviver a gente tem que se prostituir? Ou será que esta "prostituição" vem de berço?

Eu nunca me prostituí na Medicina e sempre vi muita injustiça, das quais nunca quis compactuar. Mas, elas existem agora, neste momento, estão acontecendo AGORA! Espero que não precisem estar em certos hospitais (elite ou não) para saberem disso.

Atentem a um detalhe: Verão, férias, estrada, viagens, muita farra, crises,  drogas, bebidas, acidentes... O filho de vocês pode estar sendo atendido a esta hora.
 
Quantos possuem um médico maravilhoso e podem ser atendidos em hospitais maravilhosos. Heim? E, mesmo que possam, cadê a vaga? Heim?! Tiro no escuro, não é?...

Estas injustiças estão acontecendo por motivos políticos e também por formação de caráter de toda uma população, inclusive dos profissionais de saúde. Vai de um diretor, vai de um político EM QUALQUER NÍVEL, vai de qualquer um com cargo de "confiança", vai dos subalternos, que são como uma unidade num gado e são tão miseráveis quanto aqueles que eles maltratam.

Vida de gado, amigos. Rezem para não ser abatidos.

Daí, há dez anos passados... eu perguntei a este amigo:

"Se tivesse que escolher entre um vaso sanitário para largar um barro ou 10 milhões de dólares, o que escolheria?".

Ele, logicamente, disse que escolheria a grana e se cagaria todo...

Mas, entendam, houve a opção: ele se borra ou não, ele continua pobre ou não. Célebre frase do “Estou cagado, mas estou feliz!”...

Acontece que uma grana dessas não aparece do nada na vida de ninguém e, enquanto não se pode ser "rico", é melhor se manter limpinho e satisfeitinho, com uma bela privada, satisfazer-se com as coisas mais necessárias da vida e deixar para que "poucos" (estes desgraçados) consigam fazer a merda sozinhos. Até porque ainda existem pessoas que sempre irão trocar toda esta MERDA que existe por aí por DIGNIDADE E HONRA.

O melhor é rezarmos para que morramos numa cama de mal súbito...

Leila Marinho Lage
Rio, que continua lindo, 11 de dezembro de 2007
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