Clube da Dona Menô
Dona Menô

Mãos de fada... Eu?!
Entre a totonha e a olhota

Como a maioria, aquela paciente colecionava um rosário de tristezas, mas permanecia aquela atitude positiva, aquela alegria e o sorriso sempre presente.

Sabe aquela gargalhada que contagia? A gente não ri da coisa engraçada. A gente ri da risada, e quanto mais se ri, mais dá vontade.

É o caso dela. Suas respostas e observações são sempre muito vagas. Acho que sempre está me testando e provocando:
 
Eu: “Há quanto tempo você está assim?”.
 
Ela: “Há um tempinho já”.
 
Eu: “Mas quanto tempo?”.
 
Ela: “Sei lá! Desde que eu parei aquele remédio de caixa azul, com comprimidos brancos. Eu acho...”. 

Respiro fundo, oxigenando meu cérebro e tento decifrar o enigma. Estava difícil arrancar algo esclarecedor da anamnese.

Anamnese: Do grego anámnesis - lembrança, recordação. Usamos para o questionário que fazemos, direcionado à queixa da paciente, ou para reunir em seu prontuário todas as doenças que já apresentou na vida.


Fazer anamnese com ela era um desafio. Nada era objetivo:

Eu: “Ok. Então, me diga: Aonde mesmo você sente a dor?”.
 
Ela: “Me parece, assim, que é entre a totonha e a olhota... ".

Entendi que a expressão “entre totonha e olhota”  era na região entre o ânus e a vulva. Só podia ser!

Vulva (latim): a parte externa o aparelho genital feminino. Ou seja, a totonha...


Eu fechei os punhos e passei a dar soquinhos na mesa para poder me controlar. Fechei os olhos e respirei de novo:
 
Ela: “O que foi, minha filha? Está nervosa?” - ela tinha idade para ser minha mãe - “Vai acabar enfartando cedo!”.
 
Ela não estava nem aí para a minha impaciência. No fundo, a gente estava prendendo o riso e usávamos do sarcasmo para nos entender.
 
Quando eu estava examinando as suas mamas, começou a próxima etapa do meu martírio. Ela tem cócegas e pega nas minhas mãos, impedindo o exame. Tenho que lutar com ela. Não adianta diálogo nenhum. Ela ri o tempo todo e eu faço força prendendo seus braços.
 
Os anos se passam e é sempre a mesma coisa. No abdome, então, são gargalhadas altas. Não tem jeito: ou é assim ou ninguém consegue nada com ela. Diálogo? Já desisti... 

Lá fora, na sala de espera, as pessoas devem pensar que eu estou torturando alguém. É mistura de risos e gritos:
 
Ela: “Ô, garota, você vai ter trabalho hoje comigo, porque a minha coluna está toda dura e eu não sei se vou conseguir ficar toda aberta que nem frango assado de padaria naquela cama.
Realmente foi um sacrifício. Ela se chegava... chegava, mas não conseguia ficar na ponta da mesa ginecológica. Tive que a puxar para frente com as minhas mãos “delicadas” por baixo de sua bacia, para posicioná-la na beira.
 
Ela quase voou de tão magrinha, mas a coloquei direitinho no lugar. Depois, ela passou a se mexer com seus quadris  para a direita e para a esquerda. Eu acenava com as mãos para o centro, tentando orientar sua postura correta:
 
- “Vem, vem, mais, mais. Não! Assim não!”.
 
Eu olho séria para a sua região genital e vejo que vou ter que fazer a drenagem de um abscesso no local. Tenho que ter condições para isso e ela não ajuda em nada. Nunca pensei que me tornaria flanelinha de totonhas...:
 
- “Vem... Não... Mais...”. 

Depois de detalhar sobre o que eu estava para fazer (anestesiar e cortar com bisturi), ela ficou quietinha e não deu um pio. Conversou o tempo todo e contou piadas.
 
Tenho certeza absoluta de que se fosse um homem eu teria que amordaçar ou dar anestesia geral.
 
Mulher é um bicho esquisito - a música da Rita Lee já o diz. A maioria das mulheres sofre tanto a vida toda (cólicas, dores do parto, dores em tanto lugar), que drenar um abscesso na vulva é insignificante. Pior são cócegas - e como!
 
Existe na parede em frente a esta mesa de exames, quase no teto, com duas caricaturas minhas: uma de anjo, outra de diabinho (pois é assim que me vêem antes e depois do exame). Enquanto eu cortava, rasgava e espremia, ela ria dos meus retratos, dizendo que se sentia na situação de estar com o bem e o mal entre suas pernas.
 
Foi a mesma coisa para sair daquela cama. Eu quase a coloquei no colo e “levitei” seu corpo para o chão.
 
É assim mesmo. Ginecologista, obstetra e outros especialistas têm situações que precisam usar da força. Não é só jeitinho, não.
 
Certas manobras num parto, por exemplo, não depende só de destreza nas mãos - quem faz isso sabe muito bem do que falo. Tratar do corpo humano, em todas as necessidades para o manipular, principalmente nas pessoas deficientes ou acamadas, depende de força e, ao mesmo tempo, de delicadeza. A gente tem que abaixar, se entortar, adquirir tendinites e nunca deixar a vaidade atrapalhar.
 
Num CTI ou numa intervenção cirúrgica grave, num pós- operatório difícil, onde encontramos pessoas severamente doentes e dependentes, sabemos o quanto é importante sermos “machos”, independente do nosso sexo.

É importante o pessoal de apoio como a enfermagem. Mas, ai do médico que não põe a mão na massa... Médico não pode ser “fru-fru”.
 
Aquela pacientinha já tinha ficado em minhas mãos em tais situações anteriormente e, ali no consultório, sendo por mim cortada, parecia brincadeira de criança. Ela era a chapeuzinho vermelho e eu o lobo mau.
 
Fazíamos um pacto: eu a tratava e ela se deixava tratar. A confiança e o eterno agradecimento já são o reconhecimento para o meu trabalho, que ultrapassam uma mera remuneração por um serviço médico.
 
Ela sentou na cadeira, como quem não estivese sentindo mais nada. Era um abscesso enorme. Como foi que ela conseguiu chegar rindo e toda feliz, sem saber direito o que estava acontecendo? Devia estar doendo muito, mas, com certeza, depois da incisão, ela sentiu muito alívio.
 
Ao sair, ela colocou as mãos para cima e falou: “Eu ponho as mãos para o céu por suas mãos de fada!”.
 
Fada! Eu?! Não tenho nada de fada... As mãos são o instrumento para nossas emoções. Talvez eu passe carinho mais do que outra coisa e, isso, elas sentem.

Eu sei o quanto é importante a mão quentinha onde a gente está sentindo dor. Como que por instinto, as pessoas colocam a mão na gente para tentar aliviar uma dor, para confortar ou proteger.
 
Uma vez, eu fiquei horas com a mão na barriga da minha gatinha, que estava em trabalho de parto. Quando eu cansei, ela puxou a minha mão de volta com a sua patinha para o mesmo lugar. Um gesto tipicamente humano, entretanto um animal irracional soube dizer o que queria, através dele (irracional?).
 
Lembro de um dia perceber as mãos do meu auxiliar, durante uma cirurgia, quando não sabíamos o que iríamos encontrar. Aquela mão, emborrachada por uma luva, na hora da abertura, dizia que ele estava ali para me ajudar e sabíamos que estávamos fazendo o melhor possível. Companheirismo - isso é bom demais.

Já sentiram no rosto a mão quente e sedutora da pessoa amada, mostrando que somos mais que máquinas? É mais que mão - é o corpo todo sendo irradiado pelo prazer. Mãos de amigos; mão de mãe na cabeça da gente; mão no filho que dorme - são as mãos de Deus na Terra, mesmo quando elas precisam machucar com a intenção de salvar. 

As mãos enternecem e se deixam falar pelo coração. Passamos energia pelas mãos e nos traímos ao escondê-las. E nos deixamos levar por nossas mãos aos lugares que não podemos tocar com nossa objetividade e racionalidade. Apesar de elas serem o instrumento do nosso raciocínio, também são o do nosso instinto e dos nossos melhores sentimentos.

Se tenho mãos de fada para algumas pessoas, é porque estas mesmas pessoas se deixaram levar por elas. Entregaram-se em minhas mãos para eu praticar o que sei e o que eu aprendi com a vida.
 
Isso não é poder. Sinto mais como um humilde dom que me faz continuar e acreditar que ainda vale a pena SER HUMANO, e não, fada.
 
Leila Marinho Lage
Rio, 20 de dezembro de 2005