Clube da Dona Menô
Dona Menô
UMA FLOR PARA UMA MENININHA

 
Os grandes fotógrafos desta página deverão olhar minha flor com certo desdenhe. Até eu mesma acho que esta flor não tem uma boa resolução, mas tem a cor que eu adoro. E como eu não ando fotografando flores ultimamente, esta daí só faz a vez do meu texto, o que é mais do que sua existência fugaz.
 
Do azul ao lilás e violeta viajamos no misticismo e à procura de curas. Não foi esta a minha intenção, quando em meu consultório variei a decoração entre o azul, verde e lilás. Escolhi instintivamente as cores que me fazem bem. Assim, mesmo sem eu pensar nelas ao longo o dia, acho que transmito o mesmo a quem me procura para um atendimento médico - ou até para uma conversa.
 
Eu fico lá em meu espaço de trabalho, tentando falar mais que minhas palavras. Algumas vezes sou ouvida, noutras não. Só fico muito zangada quando sou odiada, como acontece com as crianças. As meninas, de tenra idade, quando com problemas físicos, precisam muitas vezes da ajuda de um especialista em ginecologia. É do pronto atendimento que evitamos sérias complicações futuras. Nem sempre temos paciência...
 
Acho que todas as crianças, antes de se tornarem seres humanos, eram anjinhos. Eles se encontravam lá no céu e perpetravam artimanhas que usariam ao chegarem ao nosso mundo: eles bolaram fazer a maior zona na vida dos médicos, principalmente dos ginecologistas e obstetras. Em especial, eles todos, ao chegarem aqui, sabem o quanto um profissional fica nervoso quando pegam o papel higiênico do banheiro e fazem a festa na sala de espera. Todos os anjinhos sabem como é legal pular na balança, até a mesma perder a precisão. Eles todos sabem que é maravilhoso colocar suas mãos em coisas que podem contaminá-los, como é o caso do vaso sanitário...
 
Os antigos anjinhos, hoje crianças, adoram jogar migalhas de biscoitos no chão, cmo também se amarram em sujar as paredes com borras de chocolate. Eles têm especial atração por nossos receituários, canetas e computadores. Eles sabem direitinho como estragar cada coisa... MaA tática mortífera deles são o choro e o grito. Eles sabem muito bem que quando fazem “cenas”, estão atormentando a consulta de suas mães. Quando querem chamar a nossa atenção, resolvem falar uma língua que não conhecemos, o que deixa praticamente impossível travar conversas paralelas.
 
Nesta semana eu tive que dar uma caneta hidrográfica e uma folha em branco de meu prontuário para um menino, para que ele desenhasse qualquer coisa, na esperança de ele me deixar em paz em meu trabalho. Eu exigi uma condição:
 
- “Fica aí quieto desenhando e sossega! Eu te conheço bem...”.
 
Eu olhei bem no olho dele, o qual entendeu que eu sabia de onde ele vinha e sobre tudo que os anjos armam contra nós... O jeito foi ele aceitar pois meus olhos ameaçavam mais do que uma palmada...
 
As anjinhas com problemas ginecológicos, muitas vezes na primeira infância, quando são examinadas, travamos uma batalha. Elas dizem que tudo dói muito. Esperneiam-se, choram compulsivamente. Se a gente não está ao lado de uma mãe controlada emocionalmente, a coisa fica impossível de acontecer. Daí, eu desisto e mando que voltem depois de uma séria conversa em casa.
 
De vez em quando a gente é surpreendida por anjinhos muito evoluídos. Eles vieram com muita sabedoria, lá do céu. Também esta semana tive um anjo assim. Era uma menininha de quatro anos de idade.
 
Eu avisei que tinha que colher material de sua vagina com um suab. Informei à mãe que eu sabia o que estava fazendo e que sua filha nada sentiria. Esperei que a menina gritasse, assim que eu encostasse nela, mas, para meu espanto, a anjinha ficou relaxada e até riu, dizendo que sentia cócegas.
 
Quando eu acabei o exame, o quase bebê fez questão de me dizer:
 
- “Não doeu nada! Até gostei!”.
 
Já de costas para ela, ao me dirigir para a mesa, fechei os olhos e agradeci a Deus. Eu não estava bem naquele dia para receber um anjo rebelde, e acabei por ter ao meu lado um adulto em miniatura.
 
Ao nos despedirmos, demos um grande abraço. Eu quis passar, quem sabe por telepatia - meu agradecimento por seu comportamento . Eu na hora não entendi que ela não era mais um ser espiritual, e, sim, uma futura mulher, que começava a amadurecer.
 
Ainda bem que ginecologistas e boas mães sabem bem do que eu falo...
 
Leila Marinho Lage
Ginecologia e Obstetrícia
Rio de Janeiro, abril de 2011